terça-feira, 7 de novembro de 2006

Apenas mais uma tarde de calor

Vou fugir um pouco da minha editoria. Não sei ao certo o motivo. Só sei que precisava escrever algumas linhas sobre isso e publicá-las no Arca Mundo. Tudo começou num final de tarde qualquer. Final de mais um dia insuportável de trabalho. Escutando a insuportável Voz do Brasil, no meio de um trânsito também insuportável. Seria apenas mais uma parada em um dos infinitos sinaleiros de Goiânia se eu não visse a três carros na minha frente uma movimentação de estudantes recém passados no vestibular.
Há três anos atrás era eu quem estava ali. Também pedindo esmolas pra pagar a farra de um dos dias mais felizes da minha vida. Ao contrário dos pedintes por necessidade, fui recebido com muita cortesia por todos que eu abordava. Mesmo se não rolasse grana, sempre eu saía recebendo um sorriso, ou um brinco, ou uma dose de pinga. Enfim, tudo era farra e tudo era válido.
Mas voltando ao meu final de dia insuportável, quando eu vi a movimentação, tratei de separar algumas moedas para dar pra primeira pessoa que aparecesse na minha janela. Eu já havia sentido a mesma felicidade anos atrás. Era a minha hora de retribuir. Via a menina se aproximar cada vez mais do meu carro. Eu com as mãos estendidas na janela e com um sorriso no rosto. Ao chegar no carro da minha frente, a menina virou e voltou pra calçada.
Olhei pro semáforo pra ver se ele tinha esverdeado. Não tinha. Demorou mais algum bom tempo pro sinal abrir. E ninguém veio receber o meu dinheiro. Fiquei tão transtornado que apaguei o carro na hora de sair. Obviamente recebi uma chuva de buzinas. Fingi que não ouvi e segui em frente. Não queria admitir, mas aquilo me abalou mais do que eu imaginaria.
Pra começar, não haveria situação melhor pra coroar um dia frustrante. Tentei imaginar mil motivos pra justificar ninguém ter vindo apanhar meu dinheiro. Mas o único que eu tinha em mente foi a de que eu era um sujeito tão decepcionante que nem a minha grana alguém queria.
- Pra que perder meu tempo ali naquele carro popular prata ocupado por um cara tão comum? – Foi o que eu pensei que tinha passado na cabeça da menina quando ela deu meia-volta e não passou por mim. Foi aquele o dia em que eu mais me senti medíocre em toda a minha vida. E olha que ser medíocre não é ruim. É apenas estar na média das outras pessoas.
O que mais me doeu foi lembrar que há três anos atrás era eu quem estava ali. Com idéias mirabolantes. Planos para fazer diferença nesse mundo e, justamente, não estar entre a multidão de homens voltando do trabalho após mais um dia frustrante, a bordo de seus carros populares. E o problema não é o carro. Provavelmente eu estaria mais feliz se voltasse de bicicleta após uma jornada de trabalho compensadora.
Após esse fato eu passei a questionar os rumos da minha vida. Lembrei-me que o primeiro conto que eu escrevi, “A Renda Preta”, tratava-se justamente de um homem mediano que perdeu toda a vida esperando alguma coisa que nunca chegou. O temor de que aquele homem seria meu alter-ego atormentou-me após esse fato. Devo admitir que parei no primeiro boteco que eu vi e pedi uma cerveja. Também devo admitir que não a bebi. Tudo o que eu precisava era ficar lúcido para não esquecer que eu não estava feliz.
Aos vinte anos, percebi que estava tendo preocupações de gente um pouco mais experiente. Estava mais interessado com o preço do gás, que com a comida que eu iria comer. Mais preocupado com o preço da gasolina do que com a felicidade de sair para encontrar as pessoas que eu gosto. Tudo o que eu sempre mais tive medo em toda a minha vida.
Não quero falar o final dessa história porque ela ainda não chegou ao final. Mas posso adiantar que tomei algumas providências pra que ela não seja igual à do personagem que eu criei. Não sei se surtirá efeito. Porém, o próprio fato de estar escrevendo sobre algo tão íntimo para ser publicado já é um grande passo. Tal atitude seria impensável há alguns meses atrás. Além disso, passar tardes tão agradáveis como a de hoje, acompanhado de pessoas que eu gosto demais já é um grande passo. Já havia alguns anos que as minhas tardes não eram mais minhas. Sem falar que pra essas pessoas certamente eu não sou apenas mais um cara medíocre no mundo. Para elas eu fiz a diferença.
Paulo Henrique dos Santos.
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Seria ótimo! Seria!


Tudo começou numa noite de quarta feira. Noite incrível, aliás! Eu, Eula, Maria Claudia (Arca Mundo), Rafa e Marquinhos (da Comunidade Cinema, Diversão e Arte no Orkut) fomos ao teatro. Assistimos a um monólogo incrível de uma companhia carioca. - A propósito, se algum dia estiverem em qualquer lugar onde esteja em cartaz A Descoberta da América, não percam! É fantástico! - Pois bem, ao final do espetáculo, nos reunimos na casa da Claudinha para beber um bom vinho (um vinho mais complexo, como ela disse) e conversar! Noite agradabilíssima, que se estendeu até a manhã do dia seguinte, com direito a cafezinho e nascer do sol na sacada. É muito interessante como todos temos um voyeur dentro de nós! Vimos o dia nascer observando os transeuntes de seis horas da manhã de um feriado e fazíamos adivinhações e piadinhas: “hummm chegando bêbado a essa hora?” “ A noite foi boa para aqueles dois ali, hein?” (apontávamos pra um casal seminu na sacada do prédio em frente). Conversa vai, conversa vem... surge a idéia mirabolante: Vamos pra Brasília? Olhamos uns pra cara dos outros meio em dúvida do que nosso teor alcólico nos levaria a decidir... mais do que depressa, respondemos: Seria ótimo! Seria! Só não fomos no mesmo dia, porque estávamos sem dormir e não sobreviveríamos à viagem. Mas não seja por isso, amigos empolgados sempre dão um jeito. E marcamos a aventura para o sábado.
Na sexta feira, as mocinhas se encarregaram de dormir na casa da Claudinha. Ah! Nota: As mulheres são sempre mais animadas! Quase todos os homens convidados recusaram ou desistiram da viagem! Sobrou o guerreiro “bendito é o fruto” Marquinhos. (Isso porque a Claudinha não contou pra ele que os outros exemplares masculinos não iriam. Talvez se ele soubesse, desistisse também. Êta machaiada desanimada sô!). Enfim... nos reunimos na casa da Claudinha e, aproveitando a discussão da guerra dos sexos, fomos ver Sex and The City! Os episódios trariam mil discussões pra a minha vida, mas isso já é tema pra outra pauta de umas três laudas.
No dia seguinte, saiu o bonde pra Brasília. Detalhe: O Floquinho foi com a gente. Leia-se: Floquinho = cachorro da Claudinha. Camila = alergia de cachorro. Tive que adaptar meu nariz a uma maratona de espirros sem precedentes. Mas coitado do Floquinho, ele também não tinha culpa... No caminho fomos contando as loucuras de amor que já vivemos. É uma pena que eu tenha dormido durante toda a história da Claudinha em Paris, parecia interessante! Chegamos à Capital Federal! Mortos de fome, claro. Almoçamos num lugar fantástico de comidas orgânicas e naturais chamado Naturetto (sim, a Arca Mundo faz propaganda gratuita de todas as coisas que gostamos!) Talvez isso servisse de inspiração para a Eula, que é responsável pela nossa editoria de Meio Ambiente, mas nunca havia escrito uma pauta sequer! (Acho que deu certo. Tem texto dela nessa edição!) As coisas mais legais de lá, além da comida, claro (torta de ricota, beterraba ao molho de mamão, queijo de búfala, suco de manga com limão, chopp de vinho...), é a geladeira amarela estilo Família Dinossauro com pingüins em cima e a Junkie Box iluminada que toca discos de vinil! O máximo!
Depois do almoço interminável, fomos fazer um tour pela cidade e seguimos ao nosso destino: o Clube de Tênis, um dos lugares da cidade onde acontecia o Festival Internacional de Cinema de Brasília – FIC. Lugar muito bonito, bem decorado, com um café aconchegante e sofás macios. Assistimos a três curtas brasilienses, dos quais não gostamos muito, uma exceção foi Sob o Encanto da Luz (ou algum nome parecido com isso) que foi filmado na Chapada dos Veadeiros, a maior parte embaixo d´água. Tem uma fotografia muito boa e a edição foi muito bem feita!
Depois disso, o ponto alto da nossa viagem: o filme canadense Crazy – Loucos de Amor! Obra maravilhosa que trata da homossexualidade de forma sutil, delicada, bonita, sem ser apelativo, sem ser forçado. Com uma história envolvente, que traz pitadas de humor, que fala de relações, de amores, de família. Saímos todos encantados com o filme. Eu fiquei um pouco em estado de graça ao sair da sala de cinema, me emocionei bastante, confesso que até por outros motivos e a culpa é toda do ator principal! Não é um filme que te faz chorar, mas eu não me importo, gosto de chorar em filmes bonitos! É realmente incrível como uma bela obra consegue nos tocar, nos trazer lembranças, saudades, cumplicidade, adoro o cinema por isso! Pra completar, efervescência cultural total nos esperava do lado de fora: a apresentação de um quinteto de instrumentos de sopro; de dança chinesa; de um grupo de teatro e uma exposição de artesanato fecharam com chave de ouro nossa passagem pelo Clube de Tênis.
Decidimos, então, passar a noite em Brasília. Loucos animados, pois, mal tínhamos onde dormir. Nossa salvação foi Edson Sardinha, que gentilmente nos acolheu em sua kitnet. O passeio então, continuou, nossa próxima parada foi num shopping de decoração. A melhor coisa dele não são os móveis, e sim, uma livraria imensa, de dois andares, onde você acha tudo o que quer! As sessões de cinema e de jornalismo são incríveis, por sinal. Depois disso? Comer, é claro! O melhor do jantar foi o suco de caju, abacaxi e laranja... combinação muito boa! Ao final da super refeição já estávamos todos mortos de cansaço, pedindo cama. Pretendíamos passar num bistrô antes de dormir, mas não conseguimos! A parte cômica da viagem: a Eula resolveu despertar depois do banho e não nos deixava dormir. Estávamos as três mocinhas dormindo juntas na sala do Edson, no seu sofá-cama e a Eula simplesmente não nos deixava dormir. Não, não precisamos dormir de conchinha! Muitas risadas depois, desmaiamos. Com a certeza de que o horário de verão ainda nos acordaria uma hora mais cedo que o previsto, que, por sinal, era cinco da manhã!
Cinco da manhã: a boate da Claudinha desperta e ela não! Se não é o “bentido é o fruto” do Marquinhos pra nos acordar, estaríamos dormindo lá até hoje! O bonde de Goiânia saiu. Novamente com o Floquinho a bordo. Detalhe: ele fez xixi dentro do carro na volta! E pela segunda vez na semana, vimos o sol nascer juntos! Sabe, acho que precisamos nos presentear às vezes com a companhia dos amigos num programa diferente, assim. Foi um fim de semana incrível que, como disse a Claudinha, vai ficar na memória e, apesar de clichê, as nossas memórias não têm preço! Me lembrei do meu primeiro editorial: Subvertam sempre! Taí! Vamos subverter o que essa semana?
Camila Pessoa.
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FILHOS E PAIS


''Vossos filhos não são vossos filhos.
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de vós, mas não de vós.
E embora vivam convosco, não vos pertencem...'' (Khalil Gibran)



Essa semana fui buscar na sabedoria ancestral de Khalil Gibran a lição do desapego aos filhos, esses seres maravilhosos que enchem nossas vidas de amor, aprendizado e alegria.

É talvez, uma das lições mais difíceis de se colocar em prática. Os pais, em geral, têm a falsa noção de que os filhos lhes pertencem, que nunca se separarão deles. Ledo engano, a separação pode ocorrer muito antes do que se imagina. Para a maioria de nós, pais despreparados para a verdade da vida, é doloroso, muito doloroso.

Os pais freqüentemente constroem suas vidas em torno da vida de seus filhos. Desde coisas simples, como seus horários – se é que pais têm seus próprios horários – até questões mais complexas, como escolhas profissionais. Se vão ao cinema, têm de ser depois que os filhos jantam; se querem férias tranqüilas nas montanhas, têm de colocar os pés nas areias escaldantes de alguma praia da moda, porque filhos adolescentes querem 'ver gente'. Enfim, suas vidas ficam governadas por eles.

''Filhos, melhor não tê-los, mas se não tê-los, como sabê-lo?'' Eles nos acordam 5 vezes por noite quando são bebês, não nos deixam cochilar nem por um instante na fase dos 3 aos 7, até a adolescência somos professores, motoristas, babás e, nas horas vagas, cozinhamos para eles. Na adolescência, somos tão somente motoristas – e isso é bem chato – 'mãe: me leva ao shopping', 'mãe: preciso ir à casa da Nat', 'pai: minha aula de ginástica'; 'mãe: tem festa no sábado à noite, não marca nada'. Depois da carteira de motorista, você, que acordava 5 vezes por noite, fica acordada a noite inteira. Quando se mudam, não comem direito, não dormem direito e quando o telefone toca um pouco mais tarde, acordamos alarmados.

Mas os filhos são uma dádiva de Deus – para os que acreditam Nele. Eles nos ensinam o verdadeiro significado da palavra amor. Nos exercitam no altruísmo, arrebentam com nosso egoísmo, eles nos ensinam todos os dias o valor da paciência, da tolerância, da aceitação integral do outro. Filhos nos ensinam que não somos deuses, e, portanto, não temos controle sobre tudo o que acontece na vida. Filhos são um pedaço de nós com personalidade própria. São nossa estória escrita diferente, e, em alguns momentos, tão igual que chega a assustar.

Eles fazem parte de nossas vidas, mas não nos pertencem, têm vida própria, tomam decisões, fazem escolhas. Só nos cabe alertá-los das conseqüências e apoiá-los em suas decisões.

''Mãe: Tomei uma decisão. Não me adaptei, vou voltar para Brasília no ano que vem. Vou morar com meu pai.'' (V., 11 anos)
''Mãe: Não gosto daqui. Vou morar com meu pai.'' (I., 14anos)
Maria Claudia Cabral.
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“Eu choro em finais tristes!”


Este é o título de uma das comunidades do orkut que falam das milhares de pessoas choronas nos finais de filmes comoventes.

Feriado longo e a falta de dinheiro. Estes foram os motivos para que eu fizesse um programa barato e que desse prazer! Assistir filmes. Mas um problema surgiu na locação. Será que na Cine Marista teria algum filme que consolasse o fato de eu não ter saído de casa no feriado? Consegui alguns nomes bons: 21 gramas, Menina de Ouro, Diários de Motocicleta, O Declínio do Império Americano e Invasões Bárbaras. Eu teria quatro dias para assisti-los, afinal, na quarta-feira havia gastado quase todo meu dinheiro com algumas cervejas, na companhia boa dos amigos.
Comecei no dia seguinte com Diários de Motocicleta. Um bom filme. Porém, à noite, não resisti ao convite de beber, com os mesmos amigos, algumas bohemias. No bizarro boteco, convidei uma amiga para dormir na minha casa, para que no dia seguinte pudéssemos assistir a algum dos filmes. Ela topou o convite.
Acordamos às dez horas dispostas a ver Menina de Ouro. O filme rolava. Nós duas ficamos, de alguma forma, presas às lutas de Box, à luta da personagem principal para ser alguém na vida e em tantos outros dramas emocionais!
Quando o Lisandro - nosso professor de cinema - falava incansavelmente sobre a tal da identificação entre personagem e espectador no filme hollywoodiano, eu não me imaginava tão suscetível ao conceito. Nas suas aulas, eu sempre dizia: “Ah...Já sei que tudo que vejo foi pensado pra me atingir, então eu não choro no final desses filmes!”
A Pessoa e eu “quebramos a cara” com essa história. O filme de Eastwood nos colocou ao lado de Magg, a personagem principal. Fomos capazes de parar o dvd quando o nariz da moça é quebrado no meio da luta. Minha amiga, que tem horror a sangue, mesmo tendo consciência de que aquele líquido vermelho nem fosse sangue mesmo, quase passou mal. Mas quando digo “quase” é porque, de fato, começamos a gritar ao ver a cara da personagem esmurrada brutalmente.
A experiência de se colocar junto às cenas ficou muito clara nesse dia. O dono da academia era ressentido. Sim, ele era! Nós duas víamos, nas centenas de cartas devolvidas que ele enviava à filha, um dos motivos para isso. Quer dizer, passamos a justificá-lo enquanto carrancudo. Ou então, passamos a dizer: “que mulher bruta essa Magg”, ao vê-la nocautear tantas lutadores e sempre no primeiro round!
Mas, a propósito, o que é se identificar com um personagem? Ou conseguir botar o espectador dentro de um filme? Eu pensava que tinha a resposta... Bem, o Edgar Morin diria que “a identificação constitui a alma do cinema”. Eu diria que a minha (ou a nossa) participação afetiva, embriagante, em Menina de Ouro, há muito não acontecia, afinal de contas, as aulas de cinema me diziam que espectadores “normais” é que tem um olhar domesticado e blá blá blá. Ou seja, se estudantes de jornalismo, por exemplo, sabem que tudo é feito sob medida para o espectador, não existe um motivo lógico para que a gente caia nesse “apelo emocional” das indústrias de cinema hollywoodiano. “Então, onde você está, Maraísa?” – indagou a minha afetividade.
Vi que eu estava ao lado das pessoas comuns que vão ao cinema – com a sorte de ver um Menina de Ouro, por exemplo. Tudo isso, porque, não deixamos de ser menos humanos quando a racionalidade dos estudos nos invade a cabeça. Não deixamos de nos compadecer ou de nos identificar, exatamente porque somos constituídos de algum amor. Perdido em nossa alma, confesso! Mas bons diretores, como Eastwood, podem botar à tona um restinho de emoção que camuflamos frente à dureza do aqui e agora. Ah...Outra lição: mesmo que hollywoodianos, alguns filmes devem ser pacientemente assistidos. Nem que seja pra que possamos constatar que a identificação teve sucesso conosco, meros mortais.
E o feriado continuou com mais filmes...
Maraísa Lima.
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Ambiente Inteiro


Vamos parar de aceitar um ambiente pela metade


Muita gente pensa que comer orgânicos é só uma questão de saúde; que não jogar papel no chão é só uma forma de ser educado; que abastecer no posto da Petrobrás é só uma ideologia barata e que muitas outras coisas são só detalhes indiferentes e imperceptíveis para a humanidade.
Ações ecologicamente corretas podem ser realmente indiferentes à humanidade, mas não imperceptíveis. A grande maioria não considera relevante a preocupação com o meio ambiente e, por isso, julgam o papel dos ambientalistas e ecologistas como devaneios. No entanto, esses mesmos devaneios, em conjunto, são a grande possibilidade de perpetuação do homem no planeta.
Insistir em educação ambiental, assim como, em defender a sustentabilidade e as políticas públicas ambientais é criar condições para a sobrevivência da humanidade. A nossa futura geração não merece se extinguir em conseqüência de nossas atitudes impensadas e irresponsáveis.
A completude e o equilíbrio harmônico existente no meio-ambiente é dependente do papel de cada um. Os indivíduos são responsáveis pela criação de um “ambiente inteiro”, que englobe a todos e ofereça condições iguais de consumo e usufruto.
Então, para que cada um comece a defender a sua casa, tenho umas boas dicas:
* Conheça a Associação para o Desenvolvimento da Agricultura Orgânica (Adao) – não se incomodem com a propaganda, pois não escondo minhas preferências. A associação comercializa alimentos produzidos sem agrotóxico e contribui com os pequenos produtores de orgânicos. A agricultura orgânica consiste em uma prática economicamente sustentável, que se preocupa com o legado cultural e com a perpetuação das terras. A feira da Adao ocorre todas as terças-feiras, na praça Cívica, na esquina da Rua Araguaia, no Ministério da Agricultura.
* Desenvolva idéias e projetos aliados à responsabilidade sócio-ambiental. Toda atividade deve acompanhar esse novo paradigma científico da ecologia.
* Proponha textos e pautas para esta editoria de meio ambiente, nada como a democracia para a perpetuação e efetuação de uma ação ambiental.
Eula Lôbo.
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quinta-feira, 2 de novembro de 2006

Mostra SP de Cinema: Quinto Dia - Quando o Mundo se revela em dois filmes.

Investigação Sobre Um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita

Hoje foi dia de ver um dos principais títulos que compõem a retrospectiva do Cinema Político Italiano promovida pela Mostra. Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita de Elio Petri nunca chegou comercialmente ao Brasil e por isso seu contato com o público tem sido mínimo. Muitos falavam do filme como sendo o melhor dentre os títulos e por isso, minha expectativa era enorme.
Elio Petri não chega a ter o domínio da linguagem cinematográfrica que tem um Damiani, um Bellochio ou mesmo os irmãos Taviani. Seu estilo rebuscado, com a câmera vertiginosa e nervosa, os atores sempre gritando uns para os outros, me pareceu em vários momentos, excessivo e desproposital. Não que o filme não tenha seus momentos memoráveis, quase todos eles, aliás, surgem quando entra em cena a bela Florinda Balkan, e Petri parece mais sereno diante daquela beleza radiante.
É um filme que abusa do sarcasmo e da ironia, para abordar uma estória de forte teor político. Uma comédia de erros, rasgada, abusada, mas sem tanto brilho como eu imaginava.
Eu que já havia visto o belo O Crocodilo, cinema político para além da simples denúncia, e que já tinha visto tantos filmes do genial Marco Bellochio (De Punhos Cerrados, Bom Dia, Noite, A China Esta Próxima), além do excelente Uma Bala para o General de Damiano Damiani, fico com aquele gosto de “quero mais” com o fim da sessão. Investigação é um filme que por mais importante que seja, não envelheceu tão bem. É uma obra que tem lá seus momentos, mas não chega a impressionar! Pena!

Cotação: * * *
Serras da Desordem

Como um filme pode mudar nossas vidas, nossa visão de mundo, invadir nossos pensamentos, nossas almas? Essas respostas foram-me todas respondidas após o fim da sessão do brasileiro Serras da Desordem, de Andréa Tonacci.
Tonacci era pra mim, um diretor desconhecido. Mesmo apesar de saber de sua importância para o cinema nacional, quando na década de 70, ele fazia um cinema bastante underground e por isso mesmo, nunca teve o hype de diretores da época que ganharam notoriedade como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Arnaldo Jabor.
Fato é que ele chega depois de um hiato de quase 30 anos - tempo em que se dedicou a este projeto - com uma das mais bonitas e essenciais obras-primas dessa Mostra e talvez de toda a história do cinema brasileiro.
Serras da Desordem é, antes de qualquer coisa, um lamento a essa civilização decadente, de valores completamente deturpados e invertidos, de um mundo que, em nome do progresso, deixou de olhar a vida e tudo o que dela vem.
Não bastasse ser o filme-vida que é, Tonacci, como cineasta e estudioso da linguagem cinematográfica, vai ainda muito além do que havia feito, por exemplo, Eric Khoo em seu Fica Comigo, ao misturar ficção e realidade. Isso porque, ao recontar a saga do índio Carapiru, Tonacci vai reencenar certos trechos de sua vida (com o próprio Carapiru, aliás). Utilizando-se de imagens documentais - que vão de filmes da época como o seminal Iracema: Uma Transa Amazônica de Jorge Bodanski, até imagens de Telejornais, também da época - busca refazer os passos daquele homem que, separado de sua tribo após um ataque de grileiros, vagou durante meses pela selva e, encontrado por camponeses, com eles viveu por um bom tempo. Mesmo sem entender uma só palavra do que diziam, fez grandes amigos, pessoas que lhe amaram, lhe deram carinho e cuidado. Após uma denúncia, é trazido pela FUNAI para Brasília, e lá, frente ao choque com a civilização, Carapiru aos poucos irá perder a fé na vida, no seu Deus maior. Por ironia do acaso, quando chamado um tradutor para conversar com o velho índio, este que vem é ninguém menos que seu filho, separado dele há 16 anos por criminosos invasores que expulsaram e assassinaram centenas de índios nas florestas desse Brasil. Carapiru será levado de volta a sua tribo, e lá vai perceber que o veneno da civilização e do progresso terá atingido seu povo. Tudo o que ele vivera ou sonhara não passa agora de uma utopia. Carapiru então desiludido e triste se embrenhará no meio da floresta, e lá, travará seu primeiro contato com Andréa Tonacci, num final de uma beleza que faz jus a esse impressionante filme que é Serras da Desordem.
Assim, o filme irá nos confrontar com essa realidade torpe de uma sociedade que, na busca pelo ócio através do progresso tecnológico, criou um imenso vazio espiritual, um distanciamento abissal do homem com a natureza, uma quebra de valores tão caros a esse planeta doente e carente de lamentos, que gritem por socorro, por um chamado divino, para que um dia nos possa vir a salvação. Talvez, vendo obras como essa, possamos despertar em nós, o desejo da mudança, da reavaliação de nossas vidas, nossas prioridades, nossos anseios, nossa verdade, nossos valores, nossa condição humana.
Tudo o que eu disser sobre esse impressionante filme nacional - mas que carrega consigo um teor imensamente global, pois no registro do microcosmos, abrem-se as portas para o macro – pode soar pequeno, bobo. Mas é sem dúvida o filme brasileiro a ser descoberto. Um filme que o mundo todo deveria ver. Me lembrou de certa forma O Novo Mundo de Terrence Malick, por ser um lamento semelhante. Com a diferença que aqui, a ficção e a realidade são uma coisa só! E o impacto disso em nós é infinitamente maior!

Cotação: * * * * *


Still Life

Jia Zhang-Ke, que recebeu o prêmio de melhor filme na Mostra passada pelo primoroso O Mundo, é talvez o mais promissor e respeitado cineasta contemporâneo. Foi há alguns anos quando descobri o seu belo Plataforma num festival aqui em Goiânia, porém, que meu olhar se voltou com grande interesse pelos seus trabalhos. Portanto, a estréia de uma obra como essa, após sua consagração com o Leão de Ouro no Festival de Veneza, parecia o grande acontecimento desse Festival. Sessão completamente lotada, ansiedade pipocando. Entretanto, logo no começo da projeção, algo estranho. A cópia, que havia sido divulgada pela organização da Mostra como sendo em 35 mm, estava em digital, com formato da tela errado, deformando os corpos dos atores e as linhas que compunham o filme, as cores distorcidas sem contraste, o som também. Só 40 minutos depois de já iniciada a sessão a janela foi alterada (a pedido de algum entendido que ali estava), mas a cópia, visivelmente tosca, ainda nos deixava apreensivos, por não poder estar de fato, diante da obra que consagrou Jia em Veneza.
A partir daí, todos os críticos de cinema que lá estavam, foram unânimes em excluir Still Life da programação como “o filme que não passou na Mostra”. Afinal, uma obra de arte deve ser apreciada em sua plenitude, sem qualquer alteração que desvirtue todo o trabalho impecavelmente concebido pelo seu autor.
Diante disso, eu, com meu olhar não tão rigoroso, me deixo embarcar pelo cinema de Jia. E não é um cinema qualquer. É arte plena de pensar o mundo via imagens, por mais clichê e batido que isso possa parecer. Still Life, nos seus movimentos de câmera lentos e que parecem levitar, serenos e calmos, é um cinema de meditação, de um transe formal delirante, de uma delicadeza impressionante. Jia pinta aqui sua natureza morta, mas sua arte, na morte, encontra a beleza da vida, dos seus pequenos momentos registrados com rara intensidade.
Still Life conta duas histórias sobre busca, encenadas numa cidade prestes a ser inundada para dar lugar à mega-usina hidrelétrica de Três Gargantas na China. Na primeira delas, um homem está em busca de sua filha, que foi levada por sua esposa há 16 anos. Na outra, uma mulher vai em busca do marido que saiu de casa em busca de trabalho há dois anos e nnca mais voltou. E nessa busca por seus amores perdidos, Jia no registrar daquele vilarejo, aos poucos sendo destruído para dar lugar aos anseios tecnológicos da humanidade, faz uma bela e profunda reflexão sobre o mundo em que vivemos. É uma ode triste a uma sociedade que coloca a evolução técnica, acima dos indivíduos, que atropela toda essa profusão de sentimentos humanos em face do progresso.
A princípio se dividindo em capítulos, que receberão os nomes, de “Cigarretes”, “Tea”, “Tofee” e “Liquer” - iguarias que um dos personagens, em troca de informações sobre a esposa e da simpatia das pessoas, irá oferecer - o filme irá aos poucos nos colocando dentro de um universo que, hora vai do banal, dos pequenos momentos do cotidiano, ao fantástico, em cenas que parecem atingir o sublime. É uma experiência rara de cinema, daquelas que te deixam marcas visíveis pra toda uma vida. É um filme que, na sua grandeza, nos permite ignorar o
descaso desse Festival e sua falha na exibição de uma cópia desfigurada, mas ainda sim viva, poderosa e capaz de nos elevar a um estado de graça transcendental.
É assim que termino esse dia imensamente gratificante, com obras tão distintas na sua forma, mas de pensamentos e intenções semelhantes. Serras e Still Life, são filmes que, vistos juntos, se complementam de maneira surpreendente. Obras de arte que elevam o cinema a um estado de pureza formidável. Nada menos que genial.

Cotação: * * * * *
Rafael C. Parrode
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Mostra SP de Cinema: Quarto Dia.

Um dia para Manoel: A Bela da Tarde, Conversas no Porto e Sempre Bela.

Hoje era dia de se dedicar a Manoel de Oliveira e seu mais novo filme Belle Toujours, ainda inédito na Mostra. Portanto foi programada sessão tripla que se iniciava com o clássico de Luís Buñuel, A Bela da Tarde, seguido pelo documentário Conversas no Porto - Com Manoel de Oliveira e Agustina Bessa-Luís e se concluiria com Sempre Bela. A maratona pré Belle Toujours era uma experiência pra se tentar compreender o artista profundamente instigante que é Manoel de Oliveira, desta vez, em homenagem ao cineasta Luís Buñuel, seu roteirista Jean Claude Carriére e seu clássico Belle de Jour.
Primeiro fato: rever a Bela da Tarde em tela grande, e cópia original vinda da cinemateca do Rio é uma experiência forte, essencialmente a mesma de se ouvir um vinil do Pink Floyd. É o pouco que tenho a falar sobre essa obra-prima deflagradora que é o filme de Buñuel.
Eis que se inicia então Conversas no Porto. Dirigido por Danielle Serge que aqui, assume o papel de simples e humilde registradora daquele momento histórico: o encontro de duas personalidades como o cineasta português de 97 anos, Manoel de Oliveira e a escritora Agustina Bessa-Luís, 84 anos, que teve alguns de seus livros adaptados para o cinema por Manoel (Princípio da Incerteza e Espelho Mágico). Aqui, eles conversam sobre cinema, literatura, música, Europa, Brasil, memória, saudade, vaidade, progresso... vida. Mas o que impressiona é mesmo a força, a lucidez e a curiosidade que ambos têm pelo mundo. Agustina certa hora diz que, se não fosse escritora, seria investigadora de polícia, tamanha é sua necessidade de se questionar as pequenas coisas da vida, e por isso, mais cheias de segredos e surpresas. Noutro momento, diz que nasceu adulta e vai morrer criança, e essa é a diese da impressão que se tem daquelas duas pessoas que na velhice encontraram a plenitude. Manoel, que sempre havia sido exemplo de artista e de vida pra mim, agora já era um herói. E assim chegamos ao momento chave do dia. A sala lotada de “manoeléfilos” estava pronta para ver Belle Toujours – Sempre Bela. Prontos? Ora, ninguém nunca está pronto pra um filme de Manoel de Oliveira.
Se em A Bela da Tarde o filme se centrava e Sevérine (Catherine Deneuve), aqui, 40 anos depois, o foco é Hussom (Michel Piccoli ainda mais inspirado que no primeiro filme). Manoel, que abre seu filme com o espetáculo de uma orquestra, onde os personagens se virão pela primeira vez, fará, a partir de então, um jogo de gato e rato em que Hussom irá perseguir Sevérine (Ulle Orgier, que não deve em nada para Deneuve) pela cidade de Paris, e ela atordoada, irá fugir daquele encontro. Nesse momento, Manoel ainda elege outra protagonista pra seu filme, e ela é Paris, seus monumentos, suas luzes... Hussom irá procurar por Sevérine em um bar e lá, após algumas doses de whisky, contará toda a história da bela da tarde ao barman (Ricardo Trepa), ao mesmo tempo em que será abordado por duas prostitutas (Júlia Buisel e a sempre encantadora Leonor Baldaque).
Mas é na segunda metade, quando os dois se encontram por acaso em uma loja de uma esquina de Paris, e Hussom coage Sevérine para um jantar, com a desculpa de revelar a ela se ele havia contado a seu marido sobre seu passado, que Manoel irá começar a destilar toda a sua perversidade e sarcasmo. Durante o jantar, Hussom, que mais parece um mestre de cerimônias sadô-maso, começa a alfinetar Sevérine. Manoel filma o jantar como uma cerimônia da gula e do gozo: primeiro eles comem, e a câmera elegante registra aquela refeição com um prazer absoluto. Depois Hussom, utilizando-se de seu sadismo, irá envolver Séverine num jogo psicológico em que ambos irão rever suas vidas, 40 anos depois de seu ultimo encontro. Mas ele em momento algum saciará suas dúvidas, num final com direito a uma cena surreal a lá Buñuel, talvez único link formal que Manoel irá travar com ele.
Buñuel investigava seus personagens de maneira ontológica, provocando-nos a todo o tempo, utilizando do escândalo pra falar da mulher reprimida da década de 60. Manoel, por sua vez, parece querer compreender - bem à sua maneira - historicamente, todo aquele imaginário, nos brindando com uma obra extremamente jovial, singular e dona de si. Seu cinema é o da elegância, da simplicidade, da limpidez. Por isso, Belle Toujours é um filme tão estranho. Porque na sua proposta de se fazer uma homenagem, ele vai além. Fazendo um cinema que busca o tempo todo pelo gozo. E esse gozo no final, virá menos pelo seu anticlímax (que por si só já é um gozo) e mais pelo estatuto da imagem que Manoel quer discutir. É um filme livre de grandes pretensões, em que o cineasta parece exercitar sua meninice, sua transparência. Exatamente por isso, a pequena duração - 68 minutos - parece destacar ainda mais essa busca de Manoel pelo pequeno, pelo banal, e dele retirar o seu máximo. Assim como Einstein, que da pequeneza de um átomo fez criar a bomba atômica, Manoel, de um oceano, retirou um grão de areia, e desse grão fez toda uma praia, linda e instigante. E é dessa forma que surge esse cineasta que aos 97 anos, chega esbelto, vigoroso e delicadamente perverso em mais uma de suas muitas obras-primas.

Cotação:
A Bela da Tarde: * * * * *
Conversas no Porto: * * *
Belle Toujours: * * * * *
Eu Não Quero Dormir Sozinho

Quem já viu qualquer filme de Tsai Ming Liang, sabe muito bem de quem estou falando. Cineasta poeta, que través de imagens minuciosamente arquitetadas, pensa o ser humano e suas ações com um lirismo formidável que se esquiva o tempo todo do óbvio. Em Eu Não Quero Dormir Sozinho, Tsai chega ao ápice de seu rigor formal. Sua consciência na construção de seus quadros, utilizando apenas planos fixos, sem um movimento de câmera sequer, demonstram seu completo domínio da linguagem cinematográfica. E como autor que é, ele repete certos cacoetes já arraigados na sua filmografia, mas desta vez, inseridos em um cinema mais pensado, mais prodigioso e que, se não tem a novidade de seus primeiros filmes, reestrutura todos os códigos por ele outrora utilizados, em um filme pleno em sua realização e na sua busca pela beleza das relações humanas.
Aqui, o cenário é o esqueleto de um prédio abandonado em que, em seu vão central, se formou um grande lago, que nos seus reflexos, parece erguer um grande conjunto habitacional sobre as águas. Nessa construção abandonada vivem os sem tetos de uma cidade da Malásia (terra natal de Tsai, onde ele filma pela primeira vez) e será nele que toda a poesia do filme irá surgir. Rawang é um rapaz que com a ajuda de outros companheiros carrega um enorme colchão achado no lixo da cidade. Durante o trajeto, encontram Hsiao-kang jogado na rua, todo ensaguentado, e será de Rawang a idéia de leva-lo à construção para lá receber cuidados até se recuperar. No quarto improvisado, agora com o novo colchão, Rawang irá acomodar aquele estranho e com devoção irá cuidar dele dia a dia, dando-lhe comida, banho, afeto. Com o tempo nascerá ali (principalmente por parte de Rawang) uma relação de carinho, de pai e filho, ao mesmo tempo de amizade, amor e paixão, travadas por aquelas pessoas, com toda a carga humana que tais sentimentos podem trazer, alimentada ainda pela incomunicabilidade de ambos: um é malaio e outro é chinês.
Hsiao-kang, aos poucos irá se recuperar, e com o tempo irá voar para longe daquele ninho em que fora abrigado. Numa lanchonete perto do prédio onde vive, ele conhece Chyi, enfermeira que cuida do filho da dona do bar (interpretado pelo mesmo ator que faz Hsiao-kang) que está em coma. É ai que ele, apaixonado por Chyi, a levará para prédio abandonado e lá, no colchão de Rawang irão se amar. Neste momento, a cidade estará completamente tomada por uma imensa nuvem de fumaça que irá obrigar a todos que usem máscaras de gases, o que carrega ainda mais a cena de sexo entre Chyi e Hsiao-kang de tensão, claustrofobia e desejo. Rawang entretanto ao presenciar a cena ficará louco de ciúmes e tentará matar o estranho amigo, desenbocando num dos finais mais bonitos que a Mostra me proporcionou até agora.
Tsai Ming Liang cria um jogo impressionate de reflexos e de luzes, criando atmosferas fortes que carregam seu filme ainda mais de lirismo e beleza, numa espécie de quase-ficção-científica apocalíptica, que destrincha as relações humanas, cada vez mais distantes, nessa sociedade materialista em que vivemos. É um filme que no captar das luzes de néon, ou nos reflexos da água no prédio encontra sua sublimação e nos transporta para um mundo extremamente rico e particular. É um filme majestoso e generoso, pois nos coloca diante de imagens que nos permitem infinitas interpretações. Que nos coloca, com certa crueza, mas sempre com muita delicadeza, diante dos males dessa sociedade desfigurada e rancorosa em que vivemos. Um filme de um artista na sua mais completa forma, que busca a plenitude, na superação da solidão, na busca pelos mais diversos olhares para se construir uma outra dimensão. Dimensão esta que investiga os males do real, e que possivelmente, nenhum filme realista conseguiria falar com tamanho impacto e profundidade.

Cotação: * * * * *

Flandres

Se Manoel de Oliveira se renova a cada trabalho, o mesmo não se pode dizer de Bruno Dumont. Seus melhores filmes, A Vida de Jesus e A Humanidade, sempre me soaram, como grandes exercícios de pretensão, esvaziados de humanidade e por isso mesmo vazios de qualquer sentido. Dumont trabalha os indivíduos como matérias mortas, como árvores secas, e não diferente, desta vez, ele os coloca diante da guerra, do caos.
Ora, se Dumont filma com grande destreza seus espaços e a maneira como eles dialogam com os indivíduos, ele só carrega ainda mais seu filme de nada, de vácuo. Por que ele, antes de seres humanos, filma pedras, sem forma, cheiro, gosto. E antes filmar pedras, e nelas tentar encontrar alguma humanidade do que o contrário. Por isso Flandres soa equivocado do começo ao fim. É um filme, que além de não trazer nenhuma novidade à carreira do diretor, não traz nada de novo aos filmes do gênero e termina por solidificar meu desinteresse por um cineasta que desconhece o ser humano, e por isso enxerga a vida de uma maneira pobre, árida, descolorida.

Cotação: °

Rafael C. Parrode
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terça-feira, 31 de outubro de 2006

Editorial n° 02: Uma Arca de Metades


Como todo acontecimento na vida tem que ter um pontapé inicial, a Arca Mundo deu seus primeiros passos. Nossa edição de estréia nos orgulhou muito, nos mostrou o caminho que devemos seguir daqui pra frente e o quão divertido e rigoroso será ele! O mais difícil foi feito. A partir de agora, passaremos todos a outra fase, a de aperfeiçoamento e descobertas.
Buscaremos, aos poucos, uma identidade visual para a Arca e para nossos próprios textos.
Alcançaremos juntos e, ao mesmo tempo de maneira individual, nossas metades. Algo que nos complete e nos deforme, que seja rígido e esculachado, pensado e espontâneo, adorado e repudiado, lembrado e esquecido, poético e banal.
Na segunda edição,um dos nossos focos é o comportamento humano: temos um ensaio sobre a guerra, baseado no Mal Estar na Civilização de Freud, com a participação de Carollyne Almeida, que veio nos prestigiar. Maria Claudia Cabral nos fala sobre a dificuldade de relacionamento entre homens e mulheres nos dias atuais. Paulo Henrique dos Santos nos conta um pouco dos cines pornôs da cidade. E por falar em pornografia, César Guazelli estréia na Arca Mundo com o pé direito e novidades pornográficas do mundo dos quadinhos! Temos ainda, uma reportagem sobre as novas do Shopping Bougainville e, para quem estava se deliciando com a cobertura da Mostra de Cinema de São Paulo, ainda há mais textos por vir do diário de nosso correspondente cinéfilo, que já está de volta, com muita coisa pra contar!
Aos nossos leitores: sintam-se à vontade para fazer parte dessa mistura, para ser nossa outra metade, para comentar, criticar e sugerir. A evolução dessa Arca, com certeza, será muito prazerosa de se acompanhar!
“Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor, apenas respeitadas como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimento. Porque metade de mim é o que eu ouço, mas a outra metade é o que calo. “ Oswaldo Montenegro
Camila Pessoa
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Encontros e Desencontros


''Eu conheço tantos caras legais que me pedem para apresentar uma amiga legal para namorar, e tantas amigas que me pedem para apresentar um cara legal para namorar, por que essas pessoas não estão conseguindo se encontrar?''

Já há algum tempo ouço a queixa de que as pessoas não se encontram. Se há tantos homens em busca de um relacionamento bacana - e creio que há - e se há tantas mulheres sozinhas buscando seu par, por que eles não se encontram?

Uma das verdades possíveis é que homens e mulheres mudaram muito nas últimas décadas e, embora supostamente saibam quem são, ainda não sabem o que querem. Ficam espremidos entre a programação secular dos papéis aprendidos e reforçados por gerações e as conquistas alcançadas com a revolução sexual.

Querem a independência, leveza e auto-suficiência construídas pela carreira bem sucedida, mas sentem falta - especialmente os solteiros - do par-perfeito, da alma-gêmea, do modelo socialmente estabelecido da família feliz de fotografia (pai, mãe, 2 filhos – um menino e uma menina – dois carros na garagem, casa própria e apartamento na praia).

Chegam a ficar escravos desse holograma e a viver em função da busca incessante pela realização do modelo. A certa altura não importa quem seja o 'par-perfeito', importa que com ele formará a esperada família feliz.

Tal busca começa de mansinho, no final da década dos vinte anos. O tempo vai passando... ao entrar na era balzaquiana, a cobrança vai ficando mais premente e ao aproximar-se dos quarenta vira uma verdadeira caça ao tesouro, em que não importa se um gosta de praia e o outro de montanha, o importante é ser um par. O importante é constituir família. Se assim não é, um discreto sabor amargo surge na boca e a sensação de não-pertencimento toma conta, invade.

Por outro lado, outros disponíveis 'no mercado' – notadamente aqueles que já foram casados – oscilam tal qual um pêndulo entre a serenidade da vida sozinho e a angústia da solidão. Ora querem alguém, ora querem a auto-suficiência. Desejam um colo aconchegante numa noite chuvosa, mas não estão dispostos a negociar espaços, compartilhar conquistas. Construíram uma imagem idealizada de parceiro e vão, por tentativa e erro, experimentando as pessoas que encontram, verificando se encaixam no modelo.

Daí surgem as intermináveis listas de requisitos 'básicos', tais como: 'dormir do lado esquerdo da cama'; ' não gostar de Roberto Carlos'; ou idealizam o tipo de relação, querem, às vezes, um amor tatuagem. Enfim, esses requisitos 'imprescindíveis' para a felicidade a dois. Se não encaixa, se não atende aos requisitos 'básicos', é o fim daquilo que nem começou.

Alguém pode me dizer quem quer estar agarrado à pele de alguém nos dias de hoje, sem vida própria, totalmente parasita de outro alguém, sendo levado? Sem vontade própria, sem desejos, sem sonhos, sem caminho? Enfim...

''Você já ouviu Tatuagem, do Chico? Quero uma tatuagem como aquelas para mim.'' (Um homem, 28 de outubro de 2006)
''Eu não sou como tatuagem.'' (Uma mulher, 28 de outubro de 2006)
Maria Claudia Cabral
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Mais uma do Bruxo



O inglês Alan Moore, um dos mais virtuosos autores de quadrinhos de todos os tempos, é conhecido pelo seu visual cavernoso, hábitos estranhos e uma capacidade incrível de produzir obras primas. Entre seus trabalhos estão: Watchmen – talvez o melhor quadrinho já feito sobre super-heróis até hoje - V de Vingança - adaptado para o cinema pelos irmãos Wachowski contra a sua vontade e a fase áurea da série O Monstro do Pântano, em que aparece pela primeira vez o personagem John Constantine. A mais nova empreitada do autor é Lost Girls, obra polêmica ilustrada por sua mulher, Melinda Gebbie.
Lost Girls narra o encontro de três personagens célebres da literatura infantil às vésperas da Primeira Guerra Mundial para contarem suas aventurais sexuais da juventude. São elas Wendy de Peter Pan, Dorothy de O Mágico de Oz e Alice de Alice no País das Maravilhas. Daí, dá pra imaginar no vespeiro em que Moore se meteu. O Great Ormond Street Hospital, detentor dos direitos autorais de Peter Pan, acusou o autor de uso indevido da imagem de Wendy, o que resultou na proibição da obra no Reino Unido. Os grupos de direita e organizações conservadoras também torcem o nariz para o autor.
Nos EUA, Lost Girls foi publicado pela editora Top Shelf em duas reimpressões de 10.000 cópias, que se esgotaram rapidamente. No Reino Unido, a editora conseguiu permissão para publicar Lost Girls, mas, para isso, teve que negociar com o Ormond Hospital argumentando que uma batalha judicial seria danosa para as duas partes. A Top Shelf também pagou um valor não revelado para a instituição para a publicação da obra no Reino Unido, conforme determinação do parlamento britânico.No Brasil, a editora Devir adquiriu os direitos de publicação de Lost Girls, que deverá aparecer por aqui em 2007 em três edições: uma em março, uma em junho e uma em setembro.
Com Lost Girls, Moore mostra mais uma vez sua capacidade (e prazer) em incomodar os conservadores e a grande indústria. Criar pornografia (o autor faz questão de chamar Lost Girls de pornográfica) com ícones do imaginário infantil é uma manobra arriscada. Ao fazê-lo, Moore teve a consciência de sua influência e prestígio no mundo dos quadrinhos, o que por si só já garante a difusão da obra para além do cenário underground. Além isso, fazer um trabalho erótico tendo como ilustradora a própria esposa é, no mínimo, excêntrico. Agora é só esperar.

Para quem estiver com pressa, aqui vai o torrent de Lost Girls:
http://tp.searching.com/details/106178/Lost+Girls(Adult).torrent?id=106178&nothing=Lost+Girls(Adult).torrent
César Henrique Guazelli
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O Cinema que de santo só tem o nome


“Foi uma alegria a notícia do primeiro cinema de Goiânia, que se chamou Santa Maria. Feito em 1939 às pressas e com pouco recurso, constou o cinema de sala enorme, tosca, sem declive algum. Quanto mais atrás se sentava, maior o sofrimento. Parece que para a aquisição das cadeiras, o critério adotado foi o ‘vale tudo’, porque havia cadeiras de tábuas, de palhinhas, de pés lisos, pés retorcidos, encosto alto, encosto mais baixo, de todo jeito enfim. Essas cadeiras eram soltas, independentes, sem ligação que as prendesse umas às outras. E isso, que pode parecer um defeito, para nós foi um benefício. É que podíamos afastá-las caso em nossa frente se sentasse uma pessoa avantajada. E nos dias de chuva é que a coisa funcionava. As goteiras eram muitas e estar dentro do cinema era quase o mesmo que estar do lado de fora. Cada qual procurava então, arrastar sua cadeira para os lugares mais secos e ninguém ouvia bulhufas do filme, porque o barulhão do arrasta pé não deixava”

Retirado das memórias datilografadas de Marilda de Godói, 82 anos, pesquisadora, membro da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás e moradora do Centro de Goiânia desde os 11 anos.


É uma tarde chuvosa de outubro. Estou dentro do carro procurando alguma coisa inexistente. Na verdade, quero tempo para criar coragem e entrar no cinema. Mas todo esse receio para se entrar numa simples sala de cinema? Não é qualquer um. Trata-se do Cine Santa Maria, o mais antigo cinema de Goiânia e há cerca de 15 anos, um dos cinemas pornôs mais famosos da cidade. Infelizmente, a coragem não foi suficiente. Mesmo sabendo que a matéria deveria ser entregue em menos de uma semana.
Um dia se passa e estou eu novamente no mesmo lugar, estacionado a poucos metros do estabelecimento. Dessa vez estou acompanhado de mais dois colegas de jornalismo que me abstenho de citar os nomes. Um deles me grita lá de fora dizendo para sair do carro. Não há motivos para tanto nervosismo. Afinal, que mal há em entrar num cinema cujos filmes exibidos não são os que normalmente estão em cartaz nos cinemas do shopping? Se encontrasse com alguém ali eu poderia muito bem me passar por intelectual e dizer que estava fazendo uma pesquisa etnográfica. Mas pensando bem, a pessoa que também estivesse ali estaria mais constrangida que eu.
Saio do carro e vou andando rumo à entrada. Por pouco não passo reto. Se não fosse um puxão dado na hora certa, essa pauta já estaria caída a algum tempo. Na recepção há um pequeno número de funcionários. Um na bilheteria e três na roleta. Procurei não pensar no que os três imaginaram de nós. Fingi dar uma olhada na programação e escolhi um dos três filmes que estavam anunciados no momento. Cometo minha primeira gafe. Num cinema pornô, você não compra as entradas individuais. Você compra uma espécie de passaporte que te dá direito a assistir a todos os filmes. Corrigido o erro e alguns sorrisos sem graça depois, estamos nós passando pela catraca que, pra piorar a situação, trava, fazendo com que essa, que deveria ser uma travessia rápida, dure alguns minutos e prolongue o constrangimento.
Resolvido o problema com a roleta, caminhamos rumo à sala. No hall de entrada vejo um freezer de cerveja no local onde deveriam ser vendidas pipocas e jujubas. Pelo menos uma coisa o cinema pornô tem de melhor em relação ao cinema tradicional: vendem-se cervejas. Igual aos cinemas europeus. Preferi não tomar nenhuma, apesar de que talvez o álcool pudesse aliviar um pouco a tensão do ambiente.
Já estávamos dentro da sala. Ela é um pouco mais clara do que nos cinemas comerciais. O som é bem razoável. Ouvem-se os gemidos dos atores com clareza. Algumas modificações foram feitas da época em que ele era freqüentado por Marilda de Godói, até atualmente. No lugar das cadeiras móveis foram colocadas poltronas acolchoadas e imóveis. Sentar nelas? Não, obrigado. Estou bem em pé.
O cinema não estava muito freqüentado. Havia um grupo de travestis que circulava pela sala animadamente. Outras estavam acompanhadas nas cadeiras. Infelizmente, de algumas delas não pudemos ver o rosto. Também em pé, mas escorados nas paredes, havia homens de todos os tipos. Alguns bem caricatos. Outros que certamente estavam ali clandestinamente. Havia também vários que ainda estavam com o uniforme de trabalho. Por motivos óbvios, não encontramos nenhuma mulher lá dentro.
Uma coisa me chamou a atenção. Se o local era com certeza um ambiente freqüentado por homossexuais, por que os filmes exibidos eram heterossexuais? Até os cartazes na entrada comprovavam que toda a programação do dia era hetero. Não consigo acreditar em nenhuma outra explicação que não seja a de que até os cinemas pornôs ainda são moralistas. Infelizmente.
O contato entre as pessoas é muito rápido. Não mais que algumas poucas palavras. Talvez nenhuma palavra. Os que se entendiam iam direto para algum lugar mais reservado para se entenderem ainda melhor. A sala cheira a sexo. O nível de insalubridade é muito grande. Não sei como um ambiente daqueles conseguiu o alvará da Vigilância Sanitária.
Alguns minutos depois saímos da sala. Cheguei à conclusão que tudo o que precisaria para escrever esse relato já tinha obtido. Além disso, alguns olhares cobiçosos começaram a se direcionar ao nosso rumo. É melhor evitar problemas. Afinal, nós que estávamos invadindo o local e ninguém sabia que nosso objetivo ali era buscar informações para uma matéria jornalística. Nem tão jornalística, na verdade.
Enfim, após essa visita ao Cine Santa Maria, posso ter certeza que o cinema freqüentado pelos pioneiros de Goiânia já não existe mais. Assim como aconteceu com todo o Centro, a degradação já chegou às salas cinematográficas mais antigas há algum tempo. Assim como o Santa Maria, existem pelo menos mais dois outros cinemas que se tornaram pornôs. Os que não viraram pornôs, viraram igrejas. Então, para quem quiser assistir um filme mais “família”, é melhor procurar o shopping mais próximo.

Cine Santa Maria
Endereço: Rua 24, quase esquina com a Anhanguera
Horários: das 13 às 20 horas
Preço – R$: 6,00
Classificação etária de todos os filmes: 18 anos
Paulo Henrique dos Santos
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Por que a guerra?




Imagine all the people living life in peace.
John Lennon

“Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra?” (Por que a guerra?, Einstein, p.193)

A agressividade é algo inerente ao homem e dela provém, inclusive, a origem de nossa civilização, uma vez que a mesma, com suas leis, regras e imposições, surgiu para conter os impulsos agressivos do homem e permitir que fosse possível a convivência em comunidades.

O ser humano é naturalmente egoísta, daí sua agressividade. Ele é incapaz de ser completamente altruísta, de pensar em irmandade e seguir o mais notório mandamento cristão, “Amar ao próximo como a si mesmo”. Na verdade, o mais correto, segundo Sigmund Freud, seria “Amar ao próximo como ele me ama”. O amor completo e gratuito ao próximo é algo impossível, utopia, pois o ser humano só é capaz de amar, se ele encontra no próximo características de si mesmo, ou seja, se ele se vê ou vê seus ideais de vida no próximo. “Ela merecerá meu amor, se for de tal modo semelhante a mim, em aspectos importantes, que eu me possa amar nela; merecê-lo-á também, se for de tal modo mais perfeita que eu, que nela eu possa amar meu ideal de meu próprio eu (self)” (O mal-estar na civilização, Freud, p.114)

Se o homem fosse capaz de amar incondicionalmente, não haveria agressividade e portanto, nunca teria havido guerra. A forma encontrada pelo ser humano de conter a agressividade foi a criação de leis que regem e determinam a vida e impedem que todas as pulsões (Isso, Princípio de Prazer, Pulsão de Morte) sejam exteriorizadas.

O Isso é o repositório de todas as pulsões, onde ficam os desejos, a libido, o impulso de agir, de buscar prazer incessantemente, sem limites. O Supereu se desenvolve do Isso e domina-o, trata-se das inibições das pulsões. É o repositório das leis, a ordem máxima interiorizada e que não é a mesma para todos os indivíduos.

Através do Supereu a agressividade do homem é recalcada e vai sendo acumulada até certo ponto, quando o mesmo encontra alguma justificativa para exteriorizar essa agressividade. Podemos dizer, portanto, que a guerra é nada mais que uma válvula de escape de toda agressividade recalcada. Muitos homens justificam sua participação em guerras porque foram seduzidos por alguém ou alguma ideologia. Só que para ser seduzido é preciso se deixar seduzir, ou seja, toda justificativa não passa de uma desculpa banal.

Não seria absurdo afirmar, portanto, que a guerra é uma busca, mesmo que inconsciente, pelo prazer. Segundo Freud, Princípio de Prazer é uma busca incessante pela satisfação sem limites e também uma forma de evitar o desprazer, sofrimento. Frente ao Princípio de Prazer, temos o Principio de Realidade, que nada mais é que o Princípio de Prazer adaptado ao mundo real. “Um homem pense ser ele próprio feliz, simplesmente porque escapou à infelicidade ou sobreviveu ao sofrimento, e que, em geral, a tarefa de evitar o sofrimento coloque a de obter prazer em segundo plano.” (O mal-estar na civilização, Freud, p.85)

O homem só consegue distinguir o prazer porque já experimentou o sofrimento (contraste), se a dor não existisse, não seria possível a alegria (satisfação) na sua ausência. Portanto, a guerra é uma busca de prazer, pois sem a guerra (sofrimento) não haveria paz (satisfação). “Nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos” (Goethe) .

Outra possível causa da guerra, é a divisão da humanidade em grupos, nações, crenças, castas etc. Na maior parte das vezes, para conseguir unir um grupo, é preciso que se estabeleça, em comum, ódio a um outro grupo. Podemos citar vários exemplos, Hitler contra judeus, negros e homossexuais; atualmente, a briga entre Ocidente e Oriente, envolvendo o terrorismo e a idéia maniqueísta distorcida do mal contra o bem; os conflitos entre torcidas de futebol; e o próprio sentimento nacionalista exagerado, que coloca culturas e povos em confronto.

Se não houvesse uma divisão, se todos nos enxergássemos como homens, humanidade, irmandade e não como grupos que competem entre si, aí sim poderíamos eliminar a guerra da sociedade. Se nos amássemos incondicionalmente, talvez poderíamos controlar nossa pulsão agressiva e dar um verdadeiro sentido à noção de civilização. Contudo, isso se mostra utópico, pois o egoísmo humano nunca o permitirá “amar ao próximo como a si mesmo” e como a guerra sempre fez parte da história do homem desde o princípio, sem que fossem necessárias maiores justificativas, ela sempre se fará presente, até que consigamos pôr um fim a nós mesmos.
Camila Pessoa e Carollyne Almeida
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A volta por cima do gigante decadente


Investidores traçam perspectivas otimistas para a reabertura do Shopping Bougainville

A reabertura do Shopping Bougainville ao público, que estava prevista para o dia 24 de outubro, foi mais uma vez adiada. A nova data é 22 de novembro. O shopping será inaugurado oficialmente dia 21 de novembro com um evento restrito aos lojistas, funcionários e convidados. A mudança de data ocorreu por causa do atraso nas obras do espaço onde ficará uma das principais lojas, a Renner, e também devido à demora na entrega dos equipamentos para as cinco salas de cinema.
A decisão para a mudança de data ocorreu pelo consenso entre os lojistas e a direção do Bougainville, que acreditam em um impacto maior da abertura em uma única etapa. A inauguração parcial do shopping, de acordo com o superintendente do empreendimento, Walbis Suel, não exerceria o mesmo poder de atração junto ao público. Com o atraso na reabertura, também será possível a inauguração do shopping já com a decoração de Natal - em que estão sendo gastos cerca de 250 mil reais - e promoções de final de ano.
Dos 110 espaços reservados às lojas, 99 já foram locados. Os outros 11 ainda disponíveis são vistos pela direção do Bougainville como reservas estratégicas, que serão preenchidas conforme a demanda e as exigências dos consumidores. Além de lojas de Goiânia, também haverá estabelecimentos de Brasília, Porto Alegre, Belo Horizonte e São Paulo.
Durante o período de reforma, apenas a estrutura de concreto do prédio foi mantida. O interior foi totalmente modificado, incluindo a parte elétrica, telefônica, hidráulica, escadas rolantes e elevadores. O piso e decoração também foram alterados visando atender ao público alvo do empreendimento: as classes A e B. O azulejo, por exemplo, é todo em granito São Paulo e agora o Shopping tem três entradas e saídas de carros, sendo a principal toda coberta para embarque e desembarque dos clientes.
O Shopping Bougainville foi arrematado da massa falida da Encol em leilão pelo valor de R$14,78 milhões de reais por um conjunto de investidores formado pelo Grupo Orca, detentor de 40% das ações, Lacerda Par, com 20% das ações e um grupo formado por Merzian Construtora, Pinauto Veículos, Linknet e Agropecuária Stival, que juntos têm 40% das ações. Os empreendedores investiram um total de 40 milhões de reais enquanto os lojistas desembolsaram cerca de 15 milhões na montagem de seus estabelecimentos.
Inicialmente, a compra efetuada pelos investidores correspondeu a 70% das ações. Os outros 30% pertenciam ao Fundo de Previdência dos Funcionários da Caixa Econômica Federal (Funcef). Para garantir o controle total sobre o empreendimento, os sócios compraram o restante do shopping, garantindo a posse de 100% das ações.
Estima-se que, após sua reabertura, o Bougainville receba cerca de 600 mil pessoas por mês, valor que deve aumentar consideravelmente em datas como o Natal, Dia das Mães e Dia dos Namorados. O shopping deverá gerar aproximadamente 3,6 mil empregos, sendo 1,1 mil diretos. Este número poderá aumentar de acordo com o crescimento do volume de vendas e a consolidação do novo empreendimento.
Antes do fechamento para reformas, o Shopping Bougainville, inaugurado em 1990, passou por um longo período de crise, agravado com a abertura do Goiânia Shopping, em 1995 e a falência da Encol, em 1999. Durante esses anos, não conseguiu manter o volume de vendas necessário à sua manutenção e satisfação de seu público alvo, as classes A, B e C, e acabou se tornando ponto de encontro do público alternativo, especialmente jovens, atraídos pelo cinema e café Lumiére e pelo pequeno movimento.
Em 2001, foi arrendado pela Lagoa Verde, empresa especializada em revitalizar empreendimentos, já então com apenas 54% da área reservada para lojas locada. A empresa não obteve os resultados esperados e no dia 20 de dezembro de 2004 o Bougainville foi a leilão com o valor inicial de R$ 10,5 milhões. Não houve negociação, pois o grupo de investidores achou o valor inviável frente à relação custo-beneficio. O shopping passou então por um ano de crise aguda até ser arrematado dia 15 de dezembro de 2005, quando foi fechado para reformas.


César Henrique Guazelli
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sexta-feira, 27 de outubro de 2006

Terceiro Dia, ou, como o cansaço pode destruir um filme! (25/10/06)

O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias

Impressionante como a Mostra nos proporciona olhares tão distintos e ao mesmo tempo tão próximos a cada filme. Se o universo infantil havia sido registrado de maneira sublime pelas lentes de um cinema italiano forte e cheio de personalidade com Anche Libero Va Bene, desta vez é em um filme nacional que esse olhar irá se expandir e se complementar de maneira encantadora e surpreendente no belíssimo O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, dirigido por Cao Hamburguer (de Castelo Rá-Tim-Bum).
Me intrigou bastante perceber que, em meio a tantas tentativas (frustrantes) de se falar de um período tão conturbado da história do Brasil como a Ditadura - Sonhos e Desejos, Zuzu Angel, Cabra-Cega, O Que é Isso Companheiro - que um filme com um olhar basicamente infantil, seja de longe, o mais forte e bonito deles. Hamburger impressiona no registro impecável de sua câmera, ao recriar o ano de 1970, em que o pequeno Mauro é deixado pelos pais (fugitivos do governo militar) na casa do avô, que subitamente morre, antes mesmo de sua chegada, e é acolhido pela comunidade judaica de um bairro de São Paulo. O diretor em momento algum impõe qualquer reação ao seu protagonista. Ele conhece como poucos esse universo, e por isso capta de maneira sublime os pequenos acontecimentos do cotidiano daquele bairro, dos costumes daquela gente tão estranha aos olhos do garoto, e principalmente, da transformação que Mauro irá sofrer ao longo desse ano.
Hamburger demonstra imenso domínio da misé-en-scene, seja na composição dos quadros, na belíssima utilização dos reflexos em espelhos, janelas e TVs, até na simples e muito inteligente reconstituição de época que dá ainda mais credibilidade ao filme. Mas ele ainda vai além ao reconstruir a identidade daquela criança lidando com ausência dos pais, descobrindo o mundo à sua volta, um mundo novo, nunca antes desbravado.
"O Ano..." é junto com O Céu de Suely, o filme nacional de 2006, impecável no seu registro, na sua composição, no seu olhar aguçado e livre de amarras. Radiografando todo aquele ambiente brilhantemente; do apartamento do avô, ao bar em que todos se reúnem para assistir aos jogos da Copa, todo aquele espaço recebe enorme atenção do cineasta, sempre o registrando a fim de, cada vez mais, investigar seus personagens e nos brindar com momentos incríveis de puro cinema.
Foi sem dúvida até aqui, o mais aplaudido dentre os filmes que vi nesta mostra, pois na sua simplicidade e sensibilidade, parece conseguir dialogar com o público da maneira mais humana e próxima possível, nos colocando ao lado de sentimentos que em momento algum parecem forçados ou impostos. Gratificante, sincero e extremamente dono de si. São esses alguns dos adjetivos que encontro agora para falar desse filme inesquecível que é O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias.
Estréia dia 2 de novembro!
Cotação: * * * *


Fica Comigo

Filme do cingalês Eric Khoo, Fica Comigo abre com os dizeres: “inspirado na vida e autobiografia de Theresa Chan”. Esse é um dado imensamente importante pra se entender o quão ambicioso é este filme. A primeira cena mostra alguém (que não sabemos a princípio quem seja) escrevendo um texto sobre amor e perda. E em seguida, Khoo abre as portas de seu filme para que seus personagens comecem a vagar silenciosamente pela tela. Duas garotas apaixonadas que trocam mensagens de amor pelo celular e pela internet, um segurança que persegue pelo monitor de TV do prédio em que trabalha, todos os passos da bela mulher por quem se apaixonara, e um velho, excelente cozinheiro, que acompanha a esposa em estado terminal em um Hospital.
É depois de apresentar cada um de seus personagens fictícios, que Khoo dá seu tiro de misericórdia e revela a pessoa por trás da máquina de escrever. Ela é Theresa Chan, ela mesma em quem o filme se inspira, cega e surda, às voltas com a conclusão de sua autobiografia. Numa assombrosa fusão entre ficção e realidade, o diretor aos poucos irá fazer cruzar os caminhos de todas aquelas pessoas.
Chan é sem dúvida um exemplo de vida e superação, e Khoo não impõe a ela um texto ou qualquer coisa formatada. Ele simplesmente registra seu dia-a-dia como professora em uma escola para crianças cegas, suas idas ao supermercado com uma das várias pessoas que a ajudam, e os momentos em que escreve seu livro em casa.
Nesse sentido (da narrativa fragmentada em que vários personagens aparentemente desconexos irão por algum motivo se encontrar), Khoo se assemelha ao que faz Iñarritu com seus Amores Brutos, 21 Gramas e Babel, mas há uma imensa diferença na distribuição das peças nesse jogo de cinema de cada diretor. Enquanto Iñarritu impõe o absurdo pra fazer com que seus personagens se encontrem, Khoo lhes coloca apenas diante pequenos dramas do cotidiano, o que carrega ainda mais seu filme de humanidade e força.
Apesar de algumas conclusões da trama não serem plenamente satisfatórias, Fica Comigo impressiona por misturar de maneira, acredito eu, inédita, ficção e realidade de uma forma incrível. Da metade pra frente, Theresa Chan passa a ser o centro do filme, dona de todo ele. E seu exemplo de vida, em momento algum servirá como pretexto moralista para julgar os personagens fictícios da trama, o que poderia transformar o filme em uma obra de auto-ajuda. Ao final, já arrebatado pela força de Fica Comigo, uma mulher ao meu lado comenta que, ainda bem existem mostras como essa para nos colocar frente a frente a essas raridades. Verdade!
Cotação: * * * *

Fora do Jogo

O cineasta Jafar Panahi (de O Balão Branco, O Círculo e O Espelho), aproveita o jogo que classificaria a seleção do Irã para a Copa da Alemanha, e ao modo do já consolidado realismo iraniano, contará a estória de uma garota que se veste de homem para tentar ver o decisivo jogo da classificação da seleção no estádio, onde só é permitida a entrada de homens. Como o título já diz, a menina ficará de fora junto com mais outras 5 garotas que, da mesma maneira foram descobertas de seus disfarces e são mantidas presas pelos policiais até que o jogo termine e elas seja encaminhadas para a delegacia.
Panahi usa não-atores, e todos eles conseguem imprimir grande verdade ao filme. Aos poucos, o Fora do Jogo irá, com muito bom-humor, explorar a situação da mulher iraniana dentro daquela sociedade machista. O cineasta, assim como seu mestre Abbas Kiarostami, parece ter grande interesse nessa análise do papel da mulher no Oriente Médio, e por isso ele o faz com grande sensibilidade e categoria. Mas não podemos esquecer que Kiarostami já havia falado sobre o assunto de forma profunda e sublime com o seu formidável Dez.
Confesso que o cansaço brutal desse terceiro dia de Mostra não ajudou muito na minha relação com o filme. É ainda assim, uma obra importante, de um cineasta que se, em seus primeiros filmes parecia andar na sombra de seu mestre (Kiarostami), prova nesse novo trabalho que é capaz, muito bem, de andar com as próprias pernas.
Cotação: * * *

Honra de Cavalaria

Honra de Cavalaria foi o responsável pelo meu primeiro surto físico/emocional deste Festival. Como bem disse Albert Serra na apresentação de seu filme, esta é uma obra que exige acima de tudo, paciência, o que, convenhamos, após uma avalanche de 12 filmes, todos eles de digestão nada fácil, não era tarefa das mais fáceis.
Portanto não me acho digno de dizer se o filme é bom ou ruim. Seguindo duas figuras famosas da literatura, Dom Quixote e Sancho Pança, o filme de Serra em momento algum parece estar interessado em suas aventuras. É cinema contemplativo ao extremo, de tempo, luz, som e espaço. Os diálogos são raros, e quando aparecem, são exaltações de Quixote à natureza, à vida, a Deus. Nada mais que isso. É impressionante por filmar o escuro - com pouca ou nenhuma luz, fato que pode irritar às vezes - na sua relação íntima com o tempo, no trabalho impecável de som.
Mas é, sem dúvida, um filme extremamente consciente de si, mesmo que em sua maior parte, essa consciência vá contra o filme.
Não pretendo divagar tanto sobre ele. É uma obra que pede revisões com certa calma, mesmo que ainda saiba que elas serão duras, assim como o filme é! É chato, penoso, mas repleto de boa qualidade. Experiência árida. Mas me fez pensar, que se Cervantes, ao invés de escrever, filmasse seu clássico Dom Quixote, ele seria algo parecido com esse aqui.
Cotação: * *
Rafael C. Parrode
Copyrigth Arca Mundo. Todos os direitos reservados.

quarta-feira, 25 de outubro de 2006

Diário da Mostra SP de Cinema - Dia 2: 24/10/06


Dois Italianos e dois brasileiros:

Anche Libero Va Bene

Muito da aceitação de um filme vem da bagagem emocional que cada espectador carrega consigo. E acho que grande parte do meu carinho pelo filme do diretor estreante Kim Rossi Stuart, chamado Anche Libero Va Bene, vem dessa identificação, mesmo que vaga, de alguns momentos da minha infância.
Anche Libero Va Bene se apóia na já batida dinâmica da família disfuncional, em que um pai com seu casal de filhos, tem que lidar com os problemas do cotidiano, após ser abandonado pela esposa. Se engana, porém, quem pensa que o filme gira em torno da figura do pai, e mesmo se, a princípio, a dinâmica daquela família dá o tom do filme, seu grande protagonista é o filho caçula, interpretado com uma violência emocional impressionante pelo pequeno ator Alessandro Morace.
Stuart que, além de dirigir, interpreta o pai, demonstra uma impecável cumplicidade com os atores, e principalmente, filma aquela relação familiar com muita paixão, sem cair em estereótipos ou modelos de comportamento. Cada personagem reage aos acontecimentos de maneira muito peculiar, sem qualquer moralismo ou convenção que os transforme em anjos ou demônios.
Com o retorno da mãe visivelmente fragilizada e perturbada, toda a dinâmica diária a que a família se acostumara, acaba se transformando drasticamente. Mas é nesse momento que Stuart volta sua câmera ao caçula da casa, registrando de maneira delicada seu universo e como, ao longo do tempo, ele irá se fechar em um mundo particular. Mundo esse, que tenta ao máximo excluir todos os problemas que sua família enfrenta e que ele parece carregar em suas costas sozinho, mesmo sabendo, como muito bem diz o título do filme, que ele é o líbero da casa. Líbero aqui, é o jogador de futebol que distribui a bola, que arma o jogo e dá sustentação ao time. Aqui no Brasil, traduziram o título para Estamos Bem Mesmo Sem Você, título esse que deturpa de certa forma toda a construção dramática do filme, pois ninguém ali consegue lidar bem com a ausência.
A certa altura do filme, derramei a primeira lágrima da Mostra, pois, mesmo Stuart fugindo ao máximo do drama fácil e gratuito, tudo ali parece convencer plenamente, e em se tratando de uma estória tão melancólica e emotiva, não há como fugir desse tipo de reação. Saí então do filme com aquele baita sorriso no rosto, não por ele ter um final feliz ou coisa do tipo, mas por ter visto um filme em que a catarse parece vir com calma, sem imposição, de maneira iluminada, sensível, e muito, muito gratificante.
Cotação:****

O Céu de Suely

Karim Ainouz, na apresentação de seu segundo longa hoje, disse que, pra se fazer um filme, deve-se estar apaixonado pela estória que irá contar, e que, no caso de O Céu de Suely, foi ainda mais apaixonante, pois foi uma viagem à sua infância no Ceará, às lembranças de sua mãe e de suas tias que nunca saíram de sua pequena cidade natal no agreste nordestino. Ela disse, ainda, que esse filme era sobre o que poderia ter acontecido se alguma delas assim tivesse feito, e que o cinema é fascinante, porque permite esse tipo de suposição. Disse também que, diferentemente de Madame Satã, um filme basicamente noturno e boêmio, o Céu de Suely é um filme de luz, de céu, de dia.
Toda essa introdução feita Ainouz numa sessão lotada, aumentou ainda mais o poder do filme sobre mim. O Céu de Suely gira em torno de sonhos, de pessoas comuns, banais que não se sentem confortáveis no mundo em que vivem, desiludidas nesse país que pouco olha para seu povo. Karim, desde Madame Satã demosntra completo domínio da imagem, potencializado ainda mais pela fotografia impressionante de Walter Carvalho e pela competência de todo o elenco. Mas o mais marcante é como ele imprime seu olhar aguçado, lírico e livre de moralismos ao contar a estória de Hermilla (interpretada por Hermilla Guedes, que dá seu nome à personagem em uma interpretação assustadoramente bonita). Ela volta à cidade natal de Iguatu com o filho bebê a fim de recomeçar a vida ao lado do namorado, que chegará logo depois com uma gravadora de Cds para serem pirateados e vendidos em uma banca no centro da cidade. Com o tempo, Hermilla percebe que está sozinha novamente, que o pai de seu filho sumiu, e que todo o futuro que ela havia sonhado havia se desfacelado. Ela agora vende rifas de whisky e lava carros num posto de gasolina para juntar algum dinheiro e se mudar para a cidade mais longe que um ônibus puder levá-la. A passagem não é nada barata e é ai que Hermilla resolve rifar "uma noite no paraíso" com Suely (seu novo nome) com o objetivo de conseguir todo o dinheiro de que precisa para se mudar.
O filme é dono de ao menos três sequências memoráveis, como aquela em que Hermilla e João, um antigo namorado, vão de moto ao motel tendo o crepúsculo como moldura de suas fraquezas e sentimentos; ou aquela em que sua avó lhe exige que peça desculpas; mas principalmente na cena final do filme que não pretendo contar pra não estragar o impacto que ela traz. Impressionante também como a câmera captura Iguatu, cidade perdida no sertão cearense, cortada por uma linha de ferro, repleta de luzes e sons de carros e de músicas bregas tocadas em volume máximo, das pipas presas nos fios do poste, das casa rústicas e pobres.
O Céu de Suely é, sem dúvida, o melhor filme nacional que vejo em anos, porque é cinema pensando o Brasil em carne e osso, sem firulas, sem deturpações. É um filme sobre gente comum, sobre o ordinário (no bom sentido da palavra), sobre sonhos, sobre gente. Imperdível!
Cotação: ****

Sonhos de Peixe

Fascinante como um filme tão brasileiro, na sua maneira próxima e íntima de se capturar o dia-a-dia de uma vila de pescadores, venha de um russo. Kirill Mikhanovsky demonstra um impressionante domínio no registrar dos corpos e das vozes de seus personagens, em sua maioria interpretados por não-atores - o que imprime um realismo incrível a tudo - em contraponto com as sequências quase surreais dos pescadores no fundo do mar. O filme busca com delicadeza um olhar quase documental sobre os moradores da vila, sua relação com aquele espaço, com o mar. A princípio nos aproxima muito de todos aqueles personagens e em seguida nos coloca frente a frente com seus dilemas e impasses. Sonhos de Peixe é um filme que, se não tem o lirismo de O Céu de Suely, carrega toda a sua força no seu registro impecável do cotidiano. Algo semelhante a Barravento de Glauber Rocha. Mikhanovsky tem bastante interesse também em investigar o fascínio do brasileiro ante o poder da TV. Todos ali na vila não perdem um só capítulo da novela "O Beijo do Pecado" e será a televisão, o aparelho que criará o grande climax do filme. Sonhos de Peixe é, assim como o de Karim Ainouz, um filme que olha diretamente para o povo, sem interferências; e por isso mesmo é político: registra uma realidade que pouca gente está acostumado a ver e diante dela, nos faz pensar nesse país desigual em que vivemos. Esses dois filmes nacionais de hoje deveriam chegar o quanto antes, nas casas da elite, da classe média, dos políticos brasileiros, pra revelar um Brasil que essas pessoas só conhecem pelas lentes distanciadas de um Globo-Repórter ou qualquer outro programa feito, menos para abrir os olhos para revelar um Brasil de abismos, do que para fazer-nos pegar no sono dos justos.
Cotação:***

O Crocodilo

Quem pensa que um filme sobre Berlusconni será útil apenas para os italianos, se engana profundamente. Queria muito poder transmitir em TV aberta, nessa época de eleições, esse maravilhoso filme de Nanni Moretti, no horário nobre, no horário da novela, ou mesmo no lugar desses debates imbróglios que temos visto ultimamente.
Mas o que mais impressiona neste filme de Moretti é a união perfeita entre cinema e política, pois a todo o tempo ele destila sua paixão pela sétima arte, pela dura odisséia que é fazer um filme, quanto mais um filme político, de denúncia. O Crocodilo podia muito bem estar dentro da Retrospectiva do Cinema Político Italiano que a Mostra trouxe este ano.
O cineasta equilibra comédia com metaliguagem, num filme que em momento algum quer fazer a denúncia pela denúncia simplesmente. Moretti quer, através de uma obra complexa e rica como essa, questionar os limites do poder, da farsa; ao mesmo tempo que aposta numa narrativa absolutamente intimista de um produtor de filmes "B" em completo estado de falência profissional e emocional.
Há muitas cenas sublimes em O Crocodilo, todas donas de uma riqueza visual tão deslumbrante que é impossível não embarcar nessa viagem cerebral de Moretti. Um exemplo é aquela em que Bonomo, dormindo em um dos cenários construídos para seu novo filme “O Crocodilo”, acorda com o estúdio sendo destruído por uma garra de um trator que poderia muito bem ser a boca de um grande crocodilo. O fato é que o cineasta, antes de qualquer coisa, foca seu filme na instituição do cinema e na briga de Bonomo, um produtor de direita, que vê no roteiro da novata Teresa (um roteiro sobre Berlusconi claramente de esquerda) a única chance de salvar seu estúdio, e será esse projeto, sua redenção. Sua luta pra conseguir filmá-lo é mostrada com doçura e ao mesmo tempo com doses cavalares de uma ironia fina e ácida. A relação que Bonomo tem com a mulher e os filhos é registrada com a mesma força intimista de outro belo filme seu, O Quarto do Filho.
O Crocodilo é, sem dúvida, um filme que eu gostaria que alguém aqui no Brasil tivesse peito e a inteligência de fazer. Não importa, pois apesar de tocar em um ponto específico da história recente da Itália, assim como toda obra de arte, fala de uma maneira universal. Segundo dia de festival, segunda obra-prima até aqui.
Cotação: *****
Rafael C. Parrode
Copyright Arca Mundo. Todos os direitos reservados.

Diário da Mostra SP de Cinema: 1º Dia: 23/10/06

Uma das coisa mais bacanas dentro da Mostra é que, antes de cada filme, há uma pequena apresentação, em alguns casos, do próprio diretor ou de alguém ligado à produção do filme. Com isso, a aderência, o contato com a obra em questão acaba sendo mais fácil, porque acabamos ouvindo de pessoas de dentro da produção sobre o próprio filme. Foi assim com Diários de Perlov, em que a esposa do diretor falecido ano passado, Nora Perlov nos deu depoimento emocionante sobre a obra, e que, infelizmente só tive a chance de ver os dois primeiros episódios; e também com Proibido Proibir, em que Jorge Durán contou como foi a experiência de filmar os jovens brasileiros. Foi um dia marcado pela correria entre uma sala e outra, nos horários sempre colados e que exigiam que eu subisse ladeiras acima e abaixo a fim de chegar a tempo às sessões. Ainda assim, foi um dia gratificante por me colocar em contato com filmes tão diferentes, mas que vistos de uma só vez acabam por criar um vínculo interessante.

Diários de Perlov 1 e 2

Foi com esse filme que comecei o primeiro dia da Mostra, vendo as duas primeiras partes de um diário filmado, composto por seis episódios de uma hora cada, realizados pelo cineasta David Perlov, que morreu ano passado. Perlov, professor de cinema de uma universidade de Tel-Aviv, estava desapontado com os rumos que o cinema da década de 70 estava tomando, se tornando muito mais produto de publicidade e de ideologias baratas, do que uma expressão artística. Com isso, resolveu filmar o seu cotidiano e de sua família, bem como de tudo o que acontecia a sua volta. Nasceu assim Diários de Perlov,filme em que o cineasta registra, do período de 1970 até meados de 90, as banalidades do dia-a-dia, do cotidiano, do olhar a janela, do olhar as pessoas e seus rostos, do olhar a vida em sua plenitude.
Perlov consegue momentos de grande força, como quando filma as mulheres no muro das lamentações em alvoroço com o estouro da guerra do Yon-Kipur; quando filma Nora sua esposa em seus momentos de intimidade; quando visita um cemitério que se divide entre suicidas, velhos e vítimas de guerra; do seu reencontro com o passado na cidade de São Paulo (o diretor nasceu aqui) ou quando, no segundo ato, ele e sua câmara captam momento de grande força: sua filha voltando de viagem desiludida com o namorado. Diários de Perlov abriu de uma maneira quase surreal a minha chegada a esta Mostra que, em apenas um dia, se mostrou surpreendente, funcionando quase como um prólogo a esta maratona incessante de filmes que estou vivendo. Isso porque, antes de tudo, o filme é sobre a paixão de se filmar, de se documentar via imagens as coisas mais simples, e por isso mesmo, mais carregadas de mistério e fascinação.
Cotação:****


Mary

É difícil falar sobre esse novo filme de Abel Ferrara. Primeiro, porque é o mais complexo de seus trabalhos e por isso merece muitas revisões. Segundo, porque é um Ferrara que parece estar mais ligado ao cinema dito de arte do que ao de gênero que ele se consagrou fazendo, como o policial, a ficção científica e os filmes de ação.
Entretanto, é um Ferrara no pleno domínio da linguagem cinematográfica. Ele consegue criar cenas que simplesmente seriam impossíveis de se colocar no papel, numa consciência impressionante da misé en scene.
Muita gente andou criticando o filme por não ser tanto sobre Marie (Juliette Binoche), que após interpretar Maria Madalena em um filme sobre a vida de Cristo, resolve largar tudo pra se encontrar com a fé e com Deus, mudando-se para Jerusalém. Não é de graça que Ferrara abre seu filme com a cena em que Jesus ressuscita e pede a Maria que avise a seus discípulos, no filme dentro do filme que é "In My Blood", dirigido por Tony Childress (interpretado por Mathew Modine que hora parece um alter ego de Ferrara e outra uma caricatura de Mel Gibson). Mas o filme na verdade tem três protagonistas e é em torno deles que a trama irá girar. Portanto, além de ser um filme de Marie, é também um filme de Tony e do apresentador de TV Theodore (o sempre estupendo Forest Whitaker) e seus questionamentos sobre fé, raça, sexo e Deus. Na verdade, pra mim, Ferrara disse muito sobre o papel da mulher na sociedade (e isso pouca gente percebeu) e sobre essa busca incessante pela verdade sobre Cristo, quando nos esquecemos dos reais ensinamentos do "mestre" que é simplesmente amar o seu próximo. É claro que Ferrara não cai nas facilidades desses temas tão batidos e vai muito além, porque mesmo buscando a redenção e a fé, cada personagem ainda enfrenta momentos de grande violência, dúvida, sempre emoldurados pelas imagens impecáveis que se fundem umas às outras através de sua montagem maravilhosa.
Ferrara também nunca se esquece de falar de Nova York, o que me lembrou bastante em alguns momentos, de outro filme brilhante seu, X-Rmas (Gangues do Gueto). Mas e a trama? Theodor é um apresentador que está fazendo uma série de programas sobre Cristo. Quem foi ele? Quem foram seus verdadeiros discípulos? E quem e por quê mataram-no? São essas algumas das perguntas do apresentador que são respondidas por teólogos e estudiosos de verdade. Theodor é um homem como qualquer outro, trai a mulher, tem suas dúvidas, seus impasses. De outro lado está Tony, diretor megalomaníaco, que vem sofrendo críticas a seu filme por mostrar um Cristo bem diferente do que as escrituras diziam. E por último Marie, atriz famosa que larga tudo pra se entregar aos ensinamentos de Cristo. Ferrara entrelaça a vida desses três personagens os colocando frente a frente com suas dúvidas e fraquezas, e por isso, o filme é muito menos sobre Deus, Cristo e religião do que sobre seres humanos, que erram, se redimem e erram novamente. É um filme denso, forte, que acumula seu poder nas suas imagens impressionantes. A primeira obra-prima do festival.
Cotação:*****

Proibido Proibir

O cinema nacional andava carente de filmes que falassem diretamente com o universo dos jovens, sem aquele olhar deturpado global de Malhação. Jorge Durán então, reúne sua turma de alunos e ex-alunos de cursos de cinema ministrados por ele, pra falar sobre uma fase decisiva na vida dos jovens: a universidade. Não é sem razão, que ele centra seu filme em 3 personagens, Paulo (Caio Blat inspirado), amigo de León (Alexandre Rodrigues), que namora com Letícia (a sempre graciosa Maria Flôr). Paulo faz medicina, o que dá ao filme um tom mais humano, mais carnal. León faz jornalismo, é negro (e o melhor da sala) e me parece ser o personagem mais frágil e unidimensional da trama, pois será ele quem vai lidar com o elemento "denúncia" do filme. Letícia, por sua vez, é o olhar estético que Durán imprime em seu filme. Ela faz arquitetura, e será pelos olhos dela que veremos os personagens se relacionarem com o espaço a sua volta. Ela é, sem dúvida, o link estético que Durán precisava pra fazer um filme que lidasse com a imagem de uma maneira menos óbvia, investigando os espaços, a arquitetura decadente do Rio e conseqüentemente, seus personagens e suas ações. É um filme que carrega alguns problemas consigo, em parte pelo elenco secundário e também pelo terço final, que desvia o filme de sua seara humana pra fazer uma denúncia que já estava sendo feita ao longo de todo o filme, com mais sutileza. Nada porém que soe gratuito. Proibido Proibir é um filme acima da média por lidar de maneira mais próxima com o jovem, sem ser burlesco, caricato.
Cotação:***

O Violino

Filme mexicano, com forte tom político. Segue a vida de três gerações de uma família de camponeses (avô, pai e filho), músicos, num momento complicado da história recente do México em que o exército, à procura de guerrilheiros rebeldes, expulsa camponeses de seus vilarejos e os assassina, à procura de informação sobre a guerrilha. É dessa forma que Genaro, que ganha a vida tocando violão em bares junto com seu pai Plutarco - que mesmo com uma só mão, toca seu violino enquanto Lúcio seu neto, recebe o dinheiro das pessoas que estão em volta - tem sua mulher e filha capturadas pelo exército e levadas para casas de prostituição na cidade. A princípio, o filme parece carregar alto tom maniqueísta, distinguindo de maneira fácil e óbvia, os bons dos maus. É essa, por exemplo, a diese de uma das cenas mais bonitas do filme, quando Plutarco, sem saber o que responder ao neto sobre sua mãe, conta uma estória sobre os homens bons e os homens gananciosos, quando Deus mandou que os homens de bem lutassem contra os invejosos e maus, a fim de recobrar a paz na terra. A câmera, que a princípio está fixa em avô e neto, se afasta e num movimento lento, enquanto a estória é contada pelo velho, vai passando pela fogueira e subindo em um tronco de árvore até se fixar na lua.
Filmado em um preto-e-branco granulado, mas que às vezes parece colorir todas aquelas paisagens, o filme ganha força na figura serena do velho Plutarco, homem sábio, artista, de rosto marcado e de olhares profundos. Interpretado belíssimamente por Don Angel Tavira, prêmio de melhor ator em Cannes na mostra Un Certain Regard. É um filme irregular na sua composição, mas que carrega sua força nos personagens que parecem vindos do neo-realismo italiano. E se antes, o diretor Francisco Vargas parecia tratar tudo de maneira maniqueísta, ele se redime quando Plutarco, a fim de buscar sua nora e neta, conhece o comandante do exército e passa a ensiná-lo a tocar violino. O comandante que, a princípio, era um tirano, parece amolecer diante daquele homem tão sábio e cheio de vida que é Plutarco, e se mostra humano ao menos em uma cena do filme. O Violino fecha, assim, esse promissor primeiro dia da Mostra de maneira doce e dura ao mesmo tempo, numa obra que, se está longe de ser uma obra completa, é ainda assim um filme e tanto.
Cotação: ***
Rafael C. Parrode
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