quinta-feira, 2 de novembro de 2006

Eu Não Quero Dormir Sozinho

Quem já viu qualquer filme de Tsai Ming Liang, sabe muito bem de quem estou falando. Cineasta poeta, que través de imagens minuciosamente arquitetadas, pensa o ser humano e suas ações com um lirismo formidável que se esquiva o tempo todo do óbvio. Em Eu Não Quero Dormir Sozinho, Tsai chega ao ápice de seu rigor formal. Sua consciência na construção de seus quadros, utilizando apenas planos fixos, sem um movimento de câmera sequer, demonstram seu completo domínio da linguagem cinematográfica. E como autor que é, ele repete certos cacoetes já arraigados na sua filmografia, mas desta vez, inseridos em um cinema mais pensado, mais prodigioso e que, se não tem a novidade de seus primeiros filmes, reestrutura todos os códigos por ele outrora utilizados, em um filme pleno em sua realização e na sua busca pela beleza das relações humanas.
Aqui, o cenário é o esqueleto de um prédio abandonado em que, em seu vão central, se formou um grande lago, que nos seus reflexos, parece erguer um grande conjunto habitacional sobre as águas. Nessa construção abandonada vivem os sem tetos de uma cidade da Malásia (terra natal de Tsai, onde ele filma pela primeira vez) e será nele que toda a poesia do filme irá surgir. Rawang é um rapaz que com a ajuda de outros companheiros carrega um enorme colchão achado no lixo da cidade. Durante o trajeto, encontram Hsiao-kang jogado na rua, todo ensaguentado, e será de Rawang a idéia de leva-lo à construção para lá receber cuidados até se recuperar. No quarto improvisado, agora com o novo colchão, Rawang irá acomodar aquele estranho e com devoção irá cuidar dele dia a dia, dando-lhe comida, banho, afeto. Com o tempo nascerá ali (principalmente por parte de Rawang) uma relação de carinho, de pai e filho, ao mesmo tempo de amizade, amor e paixão, travadas por aquelas pessoas, com toda a carga humana que tais sentimentos podem trazer, alimentada ainda pela incomunicabilidade de ambos: um é malaio e outro é chinês.
Hsiao-kang, aos poucos irá se recuperar, e com o tempo irá voar para longe daquele ninho em que fora abrigado. Numa lanchonete perto do prédio onde vive, ele conhece Chyi, enfermeira que cuida do filho da dona do bar (interpretado pelo mesmo ator que faz Hsiao-kang) que está em coma. É ai que ele, apaixonado por Chyi, a levará para prédio abandonado e lá, no colchão de Rawang irão se amar. Neste momento, a cidade estará completamente tomada por uma imensa nuvem de fumaça que irá obrigar a todos que usem máscaras de gases, o que carrega ainda mais a cena de sexo entre Chyi e Hsiao-kang de tensão, claustrofobia e desejo. Rawang entretanto ao presenciar a cena ficará louco de ciúmes e tentará matar o estranho amigo, desenbocando num dos finais mais bonitos que a Mostra me proporcionou até agora.
Tsai Ming Liang cria um jogo impressionate de reflexos e de luzes, criando atmosferas fortes que carregam seu filme ainda mais de lirismo e beleza, numa espécie de quase-ficção-científica apocalíptica, que destrincha as relações humanas, cada vez mais distantes, nessa sociedade materialista em que vivemos. É um filme que no captar das luzes de néon, ou nos reflexos da água no prédio encontra sua sublimação e nos transporta para um mundo extremamente rico e particular. É um filme majestoso e generoso, pois nos coloca diante de imagens que nos permitem infinitas interpretações. Que nos coloca, com certa crueza, mas sempre com muita delicadeza, diante dos males dessa sociedade desfigurada e rancorosa em que vivemos. Um filme de um artista na sua mais completa forma, que busca a plenitude, na superação da solidão, na busca pelos mais diversos olhares para se construir uma outra dimensão. Dimensão esta que investiga os males do real, e que possivelmente, nenhum filme realista conseguiria falar com tamanho impacto e profundidade.

Cotação: * * * * *

Flandres

Se Manoel de Oliveira se renova a cada trabalho, o mesmo não se pode dizer de Bruno Dumont. Seus melhores filmes, A Vida de Jesus e A Humanidade, sempre me soaram, como grandes exercícios de pretensão, esvaziados de humanidade e por isso mesmo vazios de qualquer sentido. Dumont trabalha os indivíduos como matérias mortas, como árvores secas, e não diferente, desta vez, ele os coloca diante da guerra, do caos.
Ora, se Dumont filma com grande destreza seus espaços e a maneira como eles dialogam com os indivíduos, ele só carrega ainda mais seu filme de nada, de vácuo. Por que ele, antes de seres humanos, filma pedras, sem forma, cheiro, gosto. E antes filmar pedras, e nelas tentar encontrar alguma humanidade do que o contrário. Por isso Flandres soa equivocado do começo ao fim. É um filme, que além de não trazer nenhuma novidade à carreira do diretor, não traz nada de novo aos filmes do gênero e termina por solidificar meu desinteresse por um cineasta que desconhece o ser humano, e por isso enxerga a vida de uma maneira pobre, árida, descolorida.

Cotação: °

Rafael C. Parrode
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