quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

A RAINHA DESNUDA

Ontem, num daqueles bate-papos deliciosos após ver A Rainha, uma amiga me pergunta que filmes esse Stephen Frears já fez:

- Hhhhmmmmm... fez Coisas Belas e Sujas, aaahhh e fez Ligações Perigosas.

– Ligações Perigosas é um dos meu filmes prediletos...

– Meu também; concordo com ela... aaahhh e ele fez também Minha Adorável Lavanderia!

Pensei, e tentei me lembrar dos outros filmes do Frears, mas nada me veio à cabeça e logo desviamos do assunto.

Na verdade Stephen Frears já dirigiu coisas finas como Terra de Paixões, Alta Fidelidade e Liam, mas de uns tempos pra cá tem caído no esquecimento com filmes blasé como O Segredo de Mary Reilly, o recente Sra. Henderson Apresenta, além do já citado Coisas Belas e Sujas, pelo qual não nutro tanta simpatia. Eis então que Frears ressurge com esse delicado e estranhamente íntimo A Rainha - indicado a 6 Oscar, entre eles os de melhor filme, diretor, atriz e roteiro original – obra de uma austeridade que me pareceu casar muito bem com a proposta de seu diretor.

A Rainha é o filme que desmitifica o mito pra nos revelar o ser humano por trás da Rainha Elizabeth II, seus medos, fraquezas, no que talvez tenha sido um dos momentos mais difíceis de sua vida como monarca , quando da morte de sua ex-nora, a popular princesa Diana. Frears e a soberba Helen Mirren (sem esquecer do excelente roteiro de Peter Morgan) conseguem invadir a intimidade de uma das mais reservadas e solenes personalidades do planeta.

Mirren é pra mim uma das atrizes mais completas que já pude ver atuar. Dona de uma sensibilidade e inteligência impressionantes, ela compõe muito mais do que os trejeitos e modos de Elizabeth, lhe emprestando, sobretudo vida e firmeza no olhar e nos gestos, na ironia... Oscar garantido espero eu.

Frears nesse sentido me parece seguir a mesma lógica daquela história toda. Diana morreu sendo perseguida por paparazzis, sempre teve sua vida particular revirada pela imprensa e precisou encontarar na morte a paz que aqui nunca teve. O filme, nesse sentido me parece muito coerente quanto ao mostrar a vida da Princesa, ou seja, Frears, tentou invadir o mínimo possível a vida daquela mulher, utilizando-se apenas de cenas de arquivos da época, e nunca reencenando sua vida.

Uma figura naquilo tudo porém me pareceu pouco crível. Tony Blair aqui é menos o Primeiro Ministro britânico que nos acostumamos a ver nos telejornais e suas manobras políticas um tanto questionáveis, do que aquele homem compreensivo, ingênuo e sensato que o filme parece mostrar. Nesse sentido, Blair me parece ser o alter-ego do cineasta Stephen Frears, pois ambos estão em busca do ser-humano por traz da frieza monárquica de Elizabeth. E conseguem, seja na bela seqüência do cervo real, em que ela solta seu único choro, que é inclusive negado por Frears, que a mostra apenas de costas, seja na delicada seqüência em que ela retorna ao palácio de Buckigham para o funeral de Diana e encara todos os seus súditos que a massacram como vilã nessa trágica história, manipulada com tanta frieza pela imprensa e pelo partido socialista que quer o fim da monarquia e seus privilégios.

A Rainha é, na verdade, mais um dos muitos filmes contemporâneos que enfocam esse embate entre o velho e o novo. Entre tradição e modernidade, num mundo que renega o tempo todo o seu passado, sua história, em busca de um pensamento que pode ser tudo, menos humanista. Nesse sentido, é ainda mais questionável essa coisa da imagem, ou da construção de uma imagem principalmente feita pela mídia, nessa necessidade maniqueísta que o homem tem de separar o bom do mau, o mocinho do vilão. Frears parece nos querer mostrar que somos todos produtos do tempo e do espaço, e cada indivíduo é um frasco repleto de emoções ímpares, e que a chave de tudo é buscar compreender o próximo, sendo acima de tudo tolerante, e não assumir a beca da justiça e julgar as pessoas como se houvesse algum modelo de comportamento já predefinido.

A Mis- en- céne aqui é a da contensão, tanto na manipulação dos sentimentos de cada personagem, quanto na trilha sonora e na fotografia intimista criada pelo brasileiro Afonso Beato. A Família Real é fria, contida, rigorosa, e Frears assume essa postura em seu filme, mas sem perder a ternura, claro. Ao final, tanto Tony Blair, quanto Stephen Frears terão assumido sua paixão pela figura hipnotizante daquela Rainha. E se o espectador não chegar a assumir tal sentimento, ao menos enxergará aquela figura com outros olhos.

Me fez pensar muito nessa manipulação barata que a mídia do mundo todo faz quando pretende vender seu peixe, renegando uma alta carga de responsabilidade, que todo jornalista deveria ter. É o segundo filme que vejo essa semana – o outro é o primoroso A Conquista da Honra de Clint Eastwood – a questionar a imagem e seus desdobramentos. A imagem que fazem de nós, a imagem como ferramenta para manipulação das massas, nesse que me parece ser antes de tudo um forte e muito consistente libelo humanista.


Rafael C. Parrode
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