quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Editorial nº 6 : Acho que estamos todos muito sentimentalistas....

Essa edição da Arca Mundo vem para refletir sobre os sentimentos humanos: existência, poesia, felicidade, simplicidade, preconceito, inclusão. Num ensaio mais subjetivo que informacional, ovacionamos nossos sentimentos, particulares e universais. Numa expressão bonita e sincera! A cada edição, trilhamos um caminho, e que assim seja sempre!
Pedimos desculpas pelo atraso da sexta edição! E sem mais demoras: leiam-nos!

Camila Pessoa.
Copyright Arca Mundo. Todos os direitos reservados.

Uma homenagem ao mestre Fernando Pessoa

Vou me limitar essa semana a divulgar um poema do mestre Fernando Pessoa que tem me consumido a mente há alguns dias. Provavelmente alguns já o conheçam, mas vale a pena ser reafirmado e relembrado aqui por ser uma expressão única e maravilhosa de sobriedade diante das angústias humanas acerca de nossa existência. É realmente, uma expressão muito mágica e, ao mesmo tempo muito lúcida de uma noção que acho que todo ser humano, em algum momento de sua vida tem de si e talvez, de sua insignificância, diante das coisas do mundo e de sua finitude....

      TABACARIA

    Não sou nada.
    Nunca serei nada.
    Não posso querer ser nada.
    À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

    Janelas do meu quarto,
    Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
    (E se soubessem quem é, o que saberiam?),
    Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
    Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
    Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
    Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
    Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
    Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

    Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
    Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
    E não tivesse mais irmandade com as coisas
    Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
    A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
    De dentro da minha cabeça,
    E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

    Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
    Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
    À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
    E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

    Falhei em tudo.
    Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
    A aprendizagem que me deram,
    Desci dela pela janela das traseiras da casa.
    Fui até ao campo com grandes propósitos.
    Mas lá encontrei só ervas e árvores,
    E quando havia gente era igual à outra.
    Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

    Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
    Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
    E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
    Gênio? Neste momento
    Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
    E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
    Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
    Não, não creio em mim.
    Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
    Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
    Não, nem em mim...
    Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
    Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
    Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
    Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
    E quem sabe se realizáveis,
    Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
    O mundo é para quem nasce para o conquistar
    E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
    Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
    Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
    Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
    Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
    Ainda que não more nela;
    Serei sempre o que não nasceu para isso;
    Serei sempre só o que tinha qualidades;
    Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
    E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
    E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
    Crer em mim? Não, nem em nada.
    Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
    O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
    E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
    Escravos cardíacos das estrelas,
    Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
    Mas acordamos e ele é opaco,
    Levantamo-nos e ele é alheio,
    Saímos de casa e ele é a terra inteira,
    Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

    (Come chocolates, pequena;
    Come chocolates!
    Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
    Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
    Come, pequena suja, come!
    Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
    Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
    Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

    Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
    A caligrafia rápida destes versos,
    Pórtico partido para o Impossível.
    Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
    Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
    A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
    E fico em casa sem camisa.

    (Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
    Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
    Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
    Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
    Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
    Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
    Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
    Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
    Meu coração é um balde despejado.
    Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
    A mim mesmo e não encontro nada.
    Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
    Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
    Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
    Vejo os cães que também existem,
    E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
    E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

    Vivi, estudei, amei e até cri,
    E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
    Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
    E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
    (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
    Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
    E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

    Fiz de mim o que não soube
    E o que podia fazer de mim não o fiz.
    O dominó que vesti era errado.
    Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
    Quando quis tirar a máscara,
    Estava pegada à cara.
    Quando a tirei e me vi ao espelho,
    Já tinha envelhecido.
    Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
    Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
    Como um cão tolerado pela gerência
    Por ser inofensivo
    E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

    Essência musical dos meus versos inúteis,
    Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
    E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
    Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
    Como um tapete em que um bêbado tropeça
    Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

    Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
    Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
    E com o desconforto da alma mal-entendendo.
    Ele morrerá e eu morrerei.
    Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
    A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
    Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
    E a língua em que foram escritos os versos.
    Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
    Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
    Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

    Sempre uma coisa defronte da outra,
    Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
    Sempre o impossível tão estúpido como o real,
    Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
    Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

    Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
    E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
    Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
    E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

    Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
    E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
    Sigo o fumo como uma rota própria,
    E gozo, num momento sensitivo e competente,
    A libertação de todas as especulações
    E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

    Depois deito-me para trás na cadeira
    E continuo fumando.
    Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

    (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
    Talvez fosse feliz.)
    Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
    O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
    Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
    (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
    Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
    Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
    Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

    Álvaro de Campos, 15-1-1928
Camila Pessoa
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A FELICIDADE

Com força e com vontade
A felicidade há de se espalhar

Há de mudar os homens
Antes que a chama apague
Antes que a fé se acabe
Antes que seja tarde.

(Ivan Lins e Vitor Martins)

Esta semana fui surpreendida por uma indagação curiosa. Um amigo especial queria saber com que livros fiz minha receita de felicidade. Isto porque quando nos conhecemos, afirmei que me considero uma pessoa feliz. Haverá receita de felicidade?

Refleti um tiquinho sobre o meu sentido de felicidade. Acho que qualquer coisa que eu diga vai soar muito clichê. O fato é que, sendo ''clichê'' ou sendo acadêmica, a noção de felicidade passa pela noção de amor, portanto, farei uma viagem indo do teórico ao empírico, e quem quiser que conte outra.

Falar de felicidade é lembrar de Ortega y Gasset, filósofo espanhol do século XX. Acho fantástico como ele coloca o amor no centro das coisas, como mola propulsora. Acho interessante o seu ''eu sou eu e minhas circunstâncias'', que eu diria ''eu e minhas possibilidades''.

Falando em possibilidades, não poderia deixar de citar o ótimo documentário, que assisti recentemente: ''Quem somos nós?'' Afinal, é ciência - portanto ainda estamos na academia - física quântica, a física das possibilidades e a nossa capacidade de criar realidade. O meu sentido de felicidade passa pela idéia de escolha, de optar por criar a felicidade dentro e em torno de mim.

Mesmo não sendo afeta a livros de auto-ajuda ou fórmulas prontas, citaria algumas frases, que embora bastante clichês – não há como fugir - são verdadeiros ''mantras sagrados'' no caminho da felicidade que criei para mim. Ei-las:

1. A dor sempre vai existir, o sofrimento é opcional; Eu escolhi aceitar a dor, quando inevitável, mas escolhi também não sofrer. Como diria Roberto Shinyashiki, ''Ter problemas é normal, ser derrotado por eles é opcional''.

2. A felicidade depende exclusivamente de mim, de mais ninguém.

Essa é uma de minhas prediletas, porque realmente acredito que nossa felicidade afetiva não está nas mãos de outra pessoa, seja amigo, namorado, marido, seja quem for. A responsabilidade por nossa felicidade está em nossas mãos. Não é justo transferí-la para os ombros de outro.

3. Sou responsável por minha vida, por minhas escolhas, por meus sentimentos e por meu comportamento diante da vida. Só posso mudar a mim mesmo. Mudar a mim mesmo é escolher mudar minha atitude diante da vida, e isso já é um passo bem grande (e difícil).

Aqui vale uma observação: Sou dona das minhas ações, das minhas escolhas, mas não sou Deus. Isto significa que não tenho o controle de tudo a minha volta, ao contrário, tenho governabilidade sobre nada, salvo minha forma de reagir aos fatos. Isto é muito importante, ajuda a evitar a ansiedade. Tendo feito minha parte, aguardo os acontecimentos.

4. Ninguém dá aquilo que não tem. Amar-se é fundamental, só então posso realmente amar outra pessoa.

5. Sou minha melhor companhia. Se eu não me acho uma boa companhia, como posso esperar que os outros gostem de estar comigo?

6. Faço coisas inéditas, extraordinárias, ao menos uma vez por ano.

Resolvi fazer coisas extraordinárias no Reveillon de 2003. Decidi que no Reveillon de 2004, em lugar de estar na frente da TV assistindo a queima de fogos no Rio, eu correria a São Silvestre. Preparei-me durante todo o ano de 2004, e no dia 31 de dezembro, lá estava eu – uma ex-sedentária – correndo os 15km do percurso da 80ª São Silvestre. Cruzei a linha de chegada, depois de 1h53min da largada, exausta, na presença de milhares de pessoas que aplaudiam os grandes vencedores daquela prova. E entre eles, estava eu, que venci minhas próprias limitações. Acreditei, investi e realizei algo extraordinário. Dali em diante tenho feito isso sempre, ao menos uma vez por ano realizo algo inédito em minha vida.

5. Auxiliar os outros é uma grande forma de ser feliz. Vale a pena experimentar.

O que mais posso dizer? Não sei, sinceramente sou Maria Cláudia, não sou Dalai Lama. Não sou perfeita, estou longe disso. Ainda tenho um longo caminho a percorrer. Estou percorrendo o caminho, ''porque o caminho só existe quando a gente passa''.

''Acho que a 1ª vez que nos falamos, você disse que era feliz.''(Um amigo, 20 de novembro de 2006).

"Felicidade não é uma meta, mas um estado de espírito". "Ela é feita de pequenas coisas". (Roberto Shinyashiki)



Maria Claudia Cabral

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Caminhada



Das privações que a vida pode impor ao ser humano, creio que a incapacidade de andar é uma das piores. Depender de alguém ou de algo, além das próprias pernas, para locomover-se fisicamente nesse mundo que parece não ter fim é avistar um fim de perto: o olhar facilmente se perde quando não se pode mais andar para fingir ou concluir que ainda se tem muito chão para vislumbrar. Mas, penso comigo, que talvez o incapacitado seja aquele que tem pernas e não as usa: tem fôlego e não age, pensando que o pôr-do-sol finda qualquer resquício de esperança, mesmo que de fato não exista.

Por isso, ou por nada, vi a necessidade de transformar em poesia o andar nosso de cada dia e todas as suas farpas adquiridas ao longo do caminho; ou pelo menos uma tentativa, pois para o bom brasileiro, ou não, talvez o melhor slogan seja caminhar é preciso, pelos olhos de outros poetas: os de nós mesmos.

Caminhada

Hoje eu aprendi o significado do “caminhar para espairecer”

Que sempre me disseram entre rugas,

Mas nunca pude compreender.

Porque minhas pernas inquietas, chatas e estranhas

Não conseguem mais suportar toda a angústia

De quem pouco tem a ansiar ou desistir.

Pois eu sei, mais do que meus próprios ossos,

Que andar é negociar com os sentimentos,

E eu ando.

Então descobri, que além de escrever

Pra estragar e consertar,

Posso caminhar e respirar o orvalho.

Então direi aos interessados

Que as lágrimas vieram da madrugada,

Das pessoas que entoavam preces nas esquinas,

E das que paravam em fila dupla pra fumar um cigarro.

E eu que não sabia que às vezes é preciso parar...

Eu cantei e esqueci que o dia veio

Pra que eu pudesse ver claramente a realidade.

Deitei e esperei a noite chegar

Pra sonhar aquilo que eu não consegui ver.

Insista, me disseram, nesse eterno espairecer.

Ontem eu insisti, e por volta das 20 horas eu morri.

Volto inadequada, insana e veloz pra lhe dizer

Que não dura, aqui, a hipocrisia,

Pois ela é cansativamente esmiuçada em segredo.

Ordem, calma e regresso.

No outro dia é preciso acompanhar a volta,

Mesmo que tardiamente:

Já que nem mesmo no caos eu me acho

Devido à minha incapacidade de lidar com o incoerente.

Maria Clara Dunck.

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A representação dos negros nos quadrinhos

Pensar os quadrinhos no Brasil, bem como a questão racial no país, é uma tarefa complexa e delicada, sempre margeada pela problemática da exclusão e consubstanciada pela indiferença. No âmbito da discussão racial a problemática toma contornos maiores, tocando questões como direitos humanos, transformação e redimensionamento histórico das formas de preconceito, a apropriação simbólica de um grupo, o negro, pelo outro, o branco – esse outro portador dos meios e canais de difusão comunicacional – capaz de construir hegemonicamente não somente o discurso sobre si mesmo e demais grupos, mas apropriar-se da realidade social e histórica, redimensionando-a para criar simbolicamente um universo moldado pelo seu olhar.

Em relação aos quadrinhos, a questão da marginalidade, menor em dimensões pragmáticas, mas também importante nos limites desse editorial, configura-se igualmente no universo da apropriação discursiva: as mídias surgidas em fins do século XIX e difundidas durante o século XX são vistas pela maioria como instrumentos de massificação, moldadas dentro da lógica da utilidade econômica, diluídas em termos de profundidade teórica e submetidas ao compromisso com a lógica do prazer demandada pelo capital, em detrimento do compromisso com o conhecimento. Essa visão academicista e textualista sofreu transformações à partir da década de 70, com o advento da semiótica. Á partir daí, a imagem alcançou novo patamar na compreensão dos processos da produção de sentido, antes limitada à análise do texto.

O binômio quadrinhos e representação do negro pode ser bem percebido no Brasil em Ziraldo e Maurício de Souza. Maiores produtores de quadrinhos no país desde a década de 70, conseguiram superar as sérias restrições a quem tenta sobreviver de HQ's por aqui, criando universos significacionais de relações extremamente complexas. No primeiro, destacam-se as histórias da Turma do Pererê, publicadas à partir de 1960. Do segundo, a Turma da Mônica, de 1970.

A Turma do Pererê é um universo mitológico criado por Ziraldo, claramente ancorado no nacionalismo modernista. Herdeiro da tradição lobatiana, também influenciado por outros nomes do modernismo – a exemplo de Mário de Andrade – o autor foi capaz de discutir a realidade nacional de forma extremamente crítica através de um universo lúdico infantil, protagonizado por Saci-Pererê, mito do folclore brasileiro redimensionado pelo autor e inserido em um universo cujo epicentro espacial é a Mata do Fundão. Aí, Pererê convive com um grupo composto por duas negras (além do próprio Pererê), Boneca-de-Piche e Mãe Docelina e dois Índios, Tuiuiú e Tininim, além de um grande grupo de animais típicos da fauna brasileira humanizados e batizados com nomes como Moacir (jabuti), Galileu (onça) e Alan (macaco). Os dois brancos presentes no núcleo principal de personagens, o caçador de onças Compadre Tonico e seu companheiro Sêo Neném, são dimensionados com características típicas de vilania, apresentando-se como antagonistas no universo em questão.

A Turma da Mônica de Maurício de Souza, universo quadrinizado mais popular do país, apresenta características bastante distintas da realidade forjada por Ziraldo. As quatro personagens principais, Mônica, Cebolinha, Magali e Cascão, são construídas através de estereótipos e características muito bem definidas, de onde é extraído o humor nas tiras. A primeira, dentuça e com enorme força física, sempre carrega um coelho de pelúcia azul. È freqüentemente almejada por planos infalíveis que sempre falham de Cascão e Cebolinha, o primeiro com aversão a água, o segundo, troca a letra R pela letra L ao falar. Magali, companheira de Mônica, tem um apetite voraz e insaciável, sem, com isso, engordar. A habilidade com que Maurício constrói estórias baseadas nos estereótipos supracitados é notável.

Além das personagens centrais, destaca-se ainda um enorme núcleo de personagens secundárias, acionadas em momentos muito específicos, normalmente quando é necessário para a história formar grandes grupos. Servem, portanto, como um universo de reserva. Nesse núcleo secundário, encontram-se diversas personagens que se encaixam no que podemos chamar de minorias: O mudo Humberto, o japonês Nimbus, os negros Jeremias e Pelezinho (esse já não publicado), a deficiente visual Dorinha e o cadeirante Luca, estas, personagens recentes.

O que se vê portanto, é uma configuração base seguida por Ziraldo e Maurício de Souza, centrada na utilização de um núcleo central de protagonistas que atua como agente causal. Entretanto, Ziraldo, ao fazer a Turma do Pererê, tomou o cuidado de adequar suas personagens à realidade étnica do país, enquanto Maurício de Souza fez justamente o contrário. As minorias de Maurício de Souza são mera propaganda social, enquanto a turma do Pererê assume contornos muito maiores. Jeremias só é utilizado quando são necessárias personagens secundárias que dêem continuidade à cadeia de acontecimentos da trama. A função dele na Turma da Mônica, nesse sentido, é muito precisa: ser negro. Ele não tem nenhuma característica destacada ou excentricidade como as outras personagens, serve somente para o autor se mostrar politicamente correto. Obviamente, isto não deve ocorrer de maneira proposital. Entretanto, é mais uma daquelas lacunas quase imperceptíveis, involuntárias e mesmo inocentes, em que percebemos que a problemática do racismo e da exclusão está muito longe de seu fim.

Cesar Henrique Guazelli.

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