Pensar os quadrinhos no Brasil, bem como a questão racial no país, é uma tarefa complexa e delicada, sempre margeada pela problemática da exclusão e consubstanciada pela indiferença. No âmbito da discussão racial a problemática toma contornos maiores, tocando questões como direitos humanos, transformação e redimensionamento histórico das formas de preconceito, a apropriação simbólica de um grupo, o negro, pelo outro, o branco – esse outro portador dos meios e canais de difusão comunicacional – capaz de construir hegemonicamente não somente o discurso sobre si mesmo e demais grupos, mas apropriar-se da realidade social e histórica, redimensionando-a para criar simbolicamente um universo moldado pelo seu olhar.
Em relação aos quadrinhos, a questão da marginalidade, menor em dimensões pragmáticas, mas também importante nos limites desse editorial, configura-se igualmente no universo da apropriação discursiva: as mídias surgidas em fins do século XIX e difundidas durante o século XX são vistas pela maioria como instrumentos de massificação, moldadas dentro da lógica da utilidade econômica, diluídas em termos de profundidade teórica e submetidas ao compromisso com a lógica do prazer demandada pelo capital, em detrimento do compromisso com o conhecimento. Essa visão academicista e textualista sofreu transformações à partir da década de 70, com o advento da semiótica. Á partir daí, a imagem alcançou novo patamar na compreensão dos processos da produção de sentido, antes limitada à análise do texto.
O binômio quadrinhos e representação do negro pode ser bem percebido no Brasil em Ziraldo e Maurício de Souza. Maiores produtores de quadrinhos no país desde a década de 70, conseguiram superar as sérias restrições a quem tenta sobreviver de HQ's por aqui, criando universos significacionais de relações extremamente complexas. No primeiro, destacam-se as histórias da Turma do Pererê, publicadas à partir de 1960. Do segundo, a Turma da Mônica, de 1970.
A Turma do Pererê é um universo mitológico criado por Ziraldo, claramente ancorado no nacionalismo modernista. Herdeiro da tradição lobatiana, também influenciado por outros nomes do modernismo – a exemplo de Mário de Andrade – o autor foi capaz de discutir a realidade nacional de forma extremamente crítica através de um universo lúdico infantil, protagonizado por Saci-Pererê, mito do folclore brasileiro redimensionado pelo autor e inserido em um universo cujo epicentro espacial é a Mata do Fundão. Aí, Pererê convive com um grupo composto por duas negras (além do próprio Pererê), Boneca-de-Piche e Mãe Docelina e dois Índios, Tuiuiú e Tininim, além de um grande grupo de animais típicos da fauna brasileira humanizados e batizados com nomes como Moacir (jabuti), Galileu (onça) e Alan (macaco). Os dois brancos presentes no núcleo principal de personagens, o caçador de onças Compadre Tonico e seu companheiro Sêo Neném, são dimensionados com características típicas de vilania, apresentando-se como antagonistas no universo em questão.
A Turma da Mônica de Maurício de Souza, universo quadrinizado mais popular do país, apresenta características bastante distintas da realidade forjada por Ziraldo. As quatro personagens principais, Mônica, Cebolinha, Magali e Cascão, são construídas através de estereótipos e características muito bem definidas, de onde é extraído o humor nas tiras. A primeira, dentuça e com enorme força física, sempre carrega um coelho de pelúcia azul. È freqüentemente almejada por planos infalíveis que sempre falham de Cascão e Cebolinha, o primeiro com aversão a água, o segundo, troca a letra R pela letra L ao falar. Magali, companheira de Mônica, tem um apetite voraz e insaciável, sem, com isso, engordar. A habilidade com que Maurício constrói estórias baseadas nos estereótipos supracitados é notável.
Além das personagens centrais, destaca-se ainda um enorme núcleo de personagens secundárias, acionadas em momentos muito específicos, normalmente quando é necessário para a história formar grandes grupos. Servem, portanto, como um universo de reserva. Nesse núcleo secundário, encontram-se diversas personagens que se encaixam no que podemos chamar de minorias: O mudo Humberto, o japonês Nimbus, os negros Jeremias e Pelezinho (esse já não publicado), a deficiente visual Dorinha e o cadeirante Luca, estas, personagens recentes.
O que se vê portanto, é uma configuração base seguida por Ziraldo e Maurício de Souza, centrada na utilização de um núcleo central de protagonistas que atua como agente causal. Entretanto, Ziraldo, ao fazer a Turma do Pererê, tomou o cuidado de adequar suas personagens à realidade étnica do país, enquanto Maurício de Souza fez justamente o contrário. As minorias de Maurício de Souza são mera propaganda social, enquanto a turma do Pererê assume contornos muito maiores. Jeremias só é utilizado quando são necessárias personagens secundárias que dêem continuidade à cadeia de acontecimentos da trama. A função dele na Turma da Mônica, nesse sentido, é muito precisa: ser negro. Ele não tem nenhuma característica destacada ou excentricidade como as outras personagens, serve somente para o autor se mostrar politicamente correto. Obviamente, isto não deve ocorrer de maneira proposital. Entretanto, é mais uma daquelas lacunas quase imperceptíveis, involuntárias e mesmo inocentes, em que percebemos que a problemática do racismo e da exclusão está muito longe de seu fim.
Cesar Henrique Guazelli.
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