terça-feira, 5 de junho de 2007

A arte de jogar bola

Por: Marcelo “Russo” Ferreira

Quem aqui, independente de ter sido menino ou menina na infância, já não resgatou em suas memórias de um tempo que passou e não volta mais, suas peripécias, suas brincadeiras, suas fantasias, suas conversas sem pé nem cabeça?
Talvez nossas crianças, hoje, não tenham muito o que contar quando crescerem... Talvez até tenham, mas de longe, não tanto quanto nós, que éramos crianças e adolescentes nos obscuros anos 60, 70 e 80...
Lembrava da “Chácara do Externato Santa Terezinha”, do outro lado da rua... Tinha um muro facilmente transponível, quando ela ficava fechada. Era uma escola só de meninos (a das meninas ficava no outro quarteirão...) e nos finais-de-semana, os nada mais, nada menos do que seis campos de terra sempre tinham partidas de futebol acontecendo...
Meu pai, quando a família não estava sendo repreendida pela polícia do DOI-CODI, ia para lá sempre. Eu e minha irmã costumávamos ir para brincar na caixa de areia (servia para saltos em distância, em épocas de aulas, e para construir castelos, casas, morros e tudo o que a gente podia imaginar, quando nossas idéias ficavam livres para criar... éramos pretensos subversivos da ditadura)... Tinha também um estranho brinquedo que nunca consegui recordar o nome.... Na verdade eu brincava nele sem mesmo saber o nome.
Era um mastro com uma espécie de roldana presa no alto e quatro cordas segurando uma cadeirinha de couro na ponta, cada uma. O Jogo era simples: em duplas (eram duas) girávamos a toda velocidade e tínhamos que pegar um pequeno graveto que ficava melimetricamente colocado no chão. A velocidade do giro fazia as cadeiras se erguerem e descerem, num movimento quase que harmonioso. O objetivo era pegar o graveto no chão. A dupla que pegasse ficava no jogo a que perdesse saia e voltava para o final da fila...
Interessante que eram meninos de todas as idades. Lembro-me que nos meus 4-5 anos eu já me metia no meio daqueles gigantes de 9-10 anos e era uma fera no brinquedo. Nunca ficava menos de quatro rodadas seguidas...
Ou seja, com 4-5 anos, ficávamos literalmente soltos numa chácara que tinha um prédio (e ao lado a casa dos Padres), duas quadras, uma cancha de areia e 06 campos de futebol... E nunca isso foi um problema para nós.
Com 4-5 anos eu já adorava a liberdade (em pleno período da ditadura) de poder brincar na rua, na chácara em frente de casa, no quintal (fazendo paredão com a bola)... É verdade que já quase ateei fogo na casa com minha irmã, queimei meu colchão com o ferro (estava frio e eu queria esquentá-lo)...
Mas queria falar do futebol (naquela época, uma atividade absolutamente de meninos... menina não entrava mesmo).
Passei anos e anos jogando bola na rua... Tinha a quadra na escola, teve uma época em que me metia no handebol e no voleibol, de tal forma que eu quase nunca jogava bola na escola... Mas na rua (a “Rua de Baixo”, como costumávamos nos referir para avisar nossos pais), entre períodos de dominação dos esconde-esconde, pega-pega, garrafão, dono da rua e taco, o futebol sempre tinha seu império e domínio absoluto. Nada como a velha bola de borracha grossa (que a deixava sempre no ponto e não tinha carro que passasse por cima que a estourasse), quatro pedras para marcar a barrinha, a divisão do time (e sempre dividíamos de forma a deixar o jogo equilibrado) e pronto.
Regras eram sempre as mesmas... quando vier o carro pára onde está e após o carro sair do campo, recomeça o jogo; não vale ficar plantado no gol; bola embaixo do carro, aquele que colocar o pé primeiro nela fica com ela, e por aí vai...
Entre habilidosos e pernas-de-pau, todos jogavam... Tinha dia em que o habilidoso não jogava nada, tinha dia em que o perna-de-pau fazia “aquela” jogada e assim íamos até altas horas... Até jogo de final-de-ano, destes que acontecia à meia noite (não do dia 31, claro), com pãozinho com patês que nossas mães faziam e as garrafas de cerveja de nossos pais devidamente trocadas por Tubaína.
Outra característica destes nossos confrontos futebolísticos eram os equipamentos... Quando um ia de “iate” (aquele tênis da Rainha, sem cadarço), tinha que ter o mesmo cuidado de quem ia de “chinelo-de-dedo”, pois quando dava-se um chute, ia tênis e bola juntos... Tinha aqueles que usavam exatamente “aquele” tênis para jogar bola na rua... Mas tinha a maneira que concordávamos como aquele que melhor se aderia ao “piso” do jogo (o asfalto, não importava a hora do dia) e à bola: jogar descalço!
Ainda conseguimos testemunhar, hoje em dia, partidas de futebol de várzea (onde elas ainda resistem, é claro, pois a “Rua de Baixo” não guarda mais nenhuma marca dos incontáveis finais-de-semana que ela teve) com a galera descalça... mas infinitamente mais limitada.
Jogar bola na rua (ou qualquer outro jogo ou brincadeira) descalço era realmente para poucos. Os pés, além de muito sujos, o que sempre dava um trabalho a mais para limpá-los em casa, formavam bolhas que rapidamente transformavam-se em “bolhas abertas”... isso para os mais iniciantes, claro. E jogar, seja o que for, descalço, com a bolha aberta, quem o fez, sabe da dor e da dificuldade em andar (mesmo ou até porque calçado) nos dias seguintes.
Houve um tempo em que eu jogava só de tênis... um bem surrado e, de tanto surrado, teve um final trágico, daqueles que nossas mães, não suportando mais passar pelo nosso quarto e ver aquele objeto sem valor (para ela, claro) largado, dá um fim nele. Triste imaginar nosso melhor parceiro de peladas na rua sendo retorcido e esmagado, mesmo que resistindo bravamente, dentro de um caminhão de lixo. Talvez, lá no final desta saga, fosse encontrado em algum lixão por algum garoto de idade e tamanho dos pés semelhante e voltasse a freqüentar outros campinhos de várzea... Mas isso não podíamos saber.
Sem o tênis (e sem “autorização” para usar aquele da escola), não se tinha outra saída a não ser jogar descalço. É verdade que lá nos meus 4-5 anos, descalço era uma situação comum... Mas os pés, quando muito jovens, desacostumavam... E lá vinha a bola, colada em nossos pés descalços, com a incrível aderência destes com a bola e com o “piso”, desfilando por horas a fio mais uma partida de futebol...
– “Olha o carro!”... Gritava um!
– “Parôôô!”... gritava outro!
– “É minha, podem ver!”.. gritava aquele que chegou primeiro na bola encaixada embaixo do carro!...
... e assim íamos.
E estava justamente falando no final do jogo, com aquela bendita mania de tirar a pele que soltava da bolha que se abria em nosso pés... sem falar nas inevitáveis casquinhas que nossos dedos levavam junto a cada disputa de bola perto do meio-fio da calçada...
Demorava, quando voltávamos a jogar descalços, para as bolhas se transformarem em calos novamente, daqueles que já tínhamos aos 4-5 anos.
Hoje, fico pensando nos calos que se formavam...
Eles se formavam, porque jogávamos com nossos amigos... Todos eram amigos! As marcas que ficavam nos nossos dedos (algumas ficavam porque não dava tempo de cicatrizar e, portanto, o organismo acabava “desistindo” de recuperar aquele pedacinho da pele) eram disputadas COM nossos amigos que, em determinado momento, estava no “time adversário” (e que em determinadas ocasiões era da casa dele que vinha a água para todos)...
Nem todos os calos ficaram, porque nossos finais-de-semana foram profundamente reduzidos... Mas as lições dos calos e algumas pequenas marcas, essas sim ficaram.
Ficaram aquelas manchinhas no corpo que a gente descreve com orgulho quase olímpico:
– “Essa foi uma queda de bicicleta em que eu saí derrapando uns 6 metros!”
– “Essa foi no pega-pega!”
– “Esse foi num jogo de taco, em que peguei a bola no ar e enfiei o pé no buraco do bueiro”...
... e por aí vai!
Assim, creio eu, são os outros calos e cicatrizes.
Hoje, muita gente pode se referir a “marcas que estão no meu corpo, na minha alma, no meu coração”, e que foram feitas por nossos “amigos da Rua de Baixo”... Talvez até não gostaríamos de ter esses calos e essas cicatrizes.
Outras são feitas pelos “caras da Rua de Cima” (sempre que tem a Rua de Baixo, tem a Rua de Cima)...
Tem cicatrizes e calos que são realmente muito duras, muito difíceis de serem tratadas, limpas e curadas... Não basta só tirar a pelezinha (eca!), não basta passar a pedra-pomo para “alinhar” os calos formados.
Mas, como nos nossos jogos em que arrebentamos o pé, mas pegamos a bola no ar e isso significou a nossa dupla ficar com o taco (que dava o direito de ser a dupla que conduz o jogo ao final)... em que rasgamos o joelho para chegar com os pés embaixo do carro primeiro e isso dava aquele gol magistral, nunca filmado mas popularmente testemunhado... que saímos do jogo, fomos para casa, tomamos banho, o final-de-semana terminou e a Rua de Baixo nos aguardava no próximo final-de-semana, estes “jogos” de nossos dias atuais nos guardam, também, lembranças e marcas. E também deixam nossos corpos, nossa alma e nossos corações “calejados”... E sempre diremos, com o mesmo orgulho verdadeiro, que saímos vencedores. Porque celebramos em cada partida, porque sempre estávamos juntos e a “Rua de Cima” ia embora, simplesmente...
Quem aqui não resistiu verdadeiramente um dia sequer e continuou a respeitar seus amigos da Rua de Baixo e “os caras de Rua de Cima”, não saberá nunca tratar de suas cicatrizes e seus calos...
Eu trato dos meus...
Marcelo "Russo" Ferreira
Copyright Marcelo Ferreira. Se for utilizar o texto, dê crédito ao autor.

Pares e Ímpares - A Ditadura dos Pares

''Pra quem não sabe amar
Fica esperando
Alguém que caiba no seu sonho
Como varizes que vão aumentando
Como insetos em volta da lâmpada
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde''
(Frejat e Cazuza)

''Caminho da liberdade, estarmos com quem desejamos estar, enquanto proporcionamos felicidade e aprendizado mútuo''.

Certa feita, passeando pelo Rio de Janeiro, justo na feira de antigüidades da Praça XV, deparei-me com a materialização da ditadura dos pares. Queria comprar uma taça - vejam bem, uma taça - daquelas de champagne antigas, boca larga, rasa. Encontrei a taça perfeita, em cristal, maravilhosa. Perguntei o preço - era ótimo! Feliz e pronta para comprá-la, pedi à vendedora, porém ela me respondeu que não venderia uma taça sozinha, que venderia o par. Há anos penso no que venho chamando de ditadura dos pares. Ei-la!

Repare: quando reencontramos conhecidos, amigos, ex-colegas de trabalho a primeira coisa que nos perguntam, logo após o tradicional ' e aí, quanto tempo!' é se estamos namorando. Incrível perceber que saber se somos um par ou se ainda somos ímpar é uma preocupação bem maior do que 'como você está'. Infelizmente estamos vinculados à idéia confundida de que 'bem estar' é 'estar com alguém'.

Solteiros em geral são vistos como pessoas solitárias, tristes. Se assim não é, costumam estar associados às baladas ininterruptas, às noites nos bares ou nas festas, buscando incessantemente companhias fugazes. Pergunto-me freqüentemente o que motiva a crença de que ser um par é o único caminho para a felicidade e para a auto-realização.

Pessoas sozinhas em restaurantes, bares, cinemas, teatros freqüentemente são vistas como alienígenas, sem amigos, sem família, sem ninguém. Será que não dá para imaginar que às vezes é muito bom sair sozinho? Que ao escolher sua própria companhia a pessoa está optando por um tempo com seus pensamentos, um momento para reflexões, introspecção?

Outro dia vi num filme bem bobinho frase sábia. A mocinha dizia para o mocinho ' não vim aqui para dizer que preciso de você para viver, seria mentira. Eu não preciso de você para viver, mas vim para dizer que quero viver com você' . Sapiência do filminho hollywoodiano. Estar com alguém por livre escolha, certamente é mais que estar por necessidade de 'alguém'.

Seja a necessidade financeira - modelo ultrapassadíssimo - mas ainda vigente, seja a necessidade de companhia - dependência afetivo-sexual - seja ainda a necessidade social - esta, a tal orientadora da ditadura dos pares - subjuga o indivíduo até fazê-lo crer que não pertence, que não é adequado se não for um par. A necessidade, seja ela qual for, nesse sentido é prisão que acorrenta almas. É desprovimento do fundamental direito à liberdade de ser, de estar, de ir e vir como bem lhe aprouver.

Escolha, por outro lado, é máxima expressão da liberdade. Liberdade de ser quem se é, de estar onde se quer, com a companhia que dê prazer, felicidade e alegria ou com nenhuma companhia. Liberdade é escolher ir ao cinema sozinho - ou acompanhado. Liberdade é escolher a solitude, podendo ser par por livre-escolha e não por imposição da ditadura social, financeira ou emocional. Escolher estar só ou com alguém, portanto, na minha humilde opinião, é melhor que sentir-se 'o último dos moicanos' só porque não se é par.

''Estou sozinha porque quero estar sozinha, antes só que mal acompanhada'' (C.A., jornalista).


'' Por que alguém como você não tem namorado?'' (um homem dia desses).

Maria Cláudia Cabral
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