segunda-feira, 12 de novembro de 2007

A imagem

Interessado, junto à caixa de ferramentas, fez a ele muito bem espairecer no meio da noite. Pesadelos a parte, o cheiro forte de tiner invadia um coração cansado através das fendas de seu nariz pontiagudo. Se ardia, só ele mesmo haveria de saber. Deixando-se levar pelo cheiro, que agora tomava todo o ar da cozinha, caiu sobre o chão, desconfortavelmente, uma perna sobre a outra. Depois de horas, a luz do sol incomodou seus olhos que demoradamente se abriram.
Acordou de súbito num lugar que não o era estranho: ainda no chão frio da cozinha. Bom dia, uma mulher sorriu, e ele olhou um olhar de ironia insossa, fazendo-a se irritar com a demora de sua resposta. Bom dia eu disse, sim, e bom dia eu ouvi, respondendo dessa vez rapidamente. Se a conheço me diga de onde, senão, se apresente. Não brinque comigo logo de manhã, homem, que muito bem sabe de meu mal-humor matutino. Se a conhecesse poderia tê-la entendido, mas nunca havia visto aquele rosto sereno e azul do sol que acabava de nascer. Por que está no chão? Acaso não tem onde dormir? Não me diga que novamente caiu e lamentou-se toda a noite da queda, sem que eu tivesse ouvido? Não sei porque estou no chão dessa cozinha e não lhe conheço. Como vim parar nessa casa? Já falei para não brincar assim comigo logo pela manhã, em que ainda me recupero dos variados pesadelos que sempre me acometem.
Mas ele não estava brincando. Usando da mesma expressão de ironia que dirigia à estranha que se prostrava mais estranha ainda com aquela cara confusa, olhou todo o cômodo buscando algo nas paredes ou na memória, que lhe explicasse o porquê daquilo tudo. Além da sensação incômoda do frio, lembrou-se somente do cheiro de orégano. Levantou-se, olhou apenas para suas passadas, e chegando ao corredor, analisava cada detalhe da casa como se o lar que habitava há vinte anos fosse um lugar totalmente desconhecido, uma casa envelhecida por qualquer coisa que faz com que as coisas envelhecem e uma atmosfera tão árida quanto o gosto que sentia na boca.
Nada que existia naquela casa ele sabia de cor e um só suspiro que dava era uma sensação nova. Tocou seus próprios cabelos e estabeleceu com sua voz uma cumplicidade. Um música ressonava a cada palavra e ele queria ouvir mais. Disse como é belo poder nomear as coisas, não é? Ela simplesmente não sabia dizer nada. Acompanhava com os olhos cada um dos movimentos de seu marido, estupefata, aguardando que ele acordasse daquela injustiça, daquela perda de tempo, safadeza. Eu trabalho muito para ver você nossos filhos felizes, e você me chama de mulher, nos momentos bons, eu gosto.
Mulher.... repetiu dezenas de vezes. Pena não ser a minha, pensou. E ela já estava esquentando o leite, barriga e braços no fogão. É minha mulher? Por que pergunta isso? Sou sua mulher. E tenho filhos? Tem três lindos filhos que agora dormem, esperando que você vá trabalhar e os deixe em paz. Por que não me lembro de nada disso, mulher? Eu não sei, está a fazer piadas hoje. Gostam de mim? Já gostaram. E por que não gostam mais? Está estranho hoje, homem. Eu sei.
Encontrou um quarto, uma cama e deitou-se. Olhou para o despertador, percebendo ser aquela uma boa hora para morrer. Boa noite, luz do sol, boa hora para morrer. Antes de dormir novamente, escreveu num papel um verso. Um verso de que se lembrava: é um meta-poema a imagem incauta do meu peito... E dormiu, sereno.
Acorde, meu bem, está atrasado. E chega de brincadeiras pela manhã, me assustam. Bom dia, mulher. Sonhei com tintas essa noite...
Maria Clara Dunck
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