quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Caminhada



Das privações que a vida pode impor ao ser humano, creio que a incapacidade de andar é uma das piores. Depender de alguém ou de algo, além das próprias pernas, para locomover-se fisicamente nesse mundo que parece não ter fim é avistar um fim de perto: o olhar facilmente se perde quando não se pode mais andar para fingir ou concluir que ainda se tem muito chão para vislumbrar. Mas, penso comigo, que talvez o incapacitado seja aquele que tem pernas e não as usa: tem fôlego e não age, pensando que o pôr-do-sol finda qualquer resquício de esperança, mesmo que de fato não exista.

Por isso, ou por nada, vi a necessidade de transformar em poesia o andar nosso de cada dia e todas as suas farpas adquiridas ao longo do caminho; ou pelo menos uma tentativa, pois para o bom brasileiro, ou não, talvez o melhor slogan seja caminhar é preciso, pelos olhos de outros poetas: os de nós mesmos.

Caminhada

Hoje eu aprendi o significado do “caminhar para espairecer”

Que sempre me disseram entre rugas,

Mas nunca pude compreender.

Porque minhas pernas inquietas, chatas e estranhas

Não conseguem mais suportar toda a angústia

De quem pouco tem a ansiar ou desistir.

Pois eu sei, mais do que meus próprios ossos,

Que andar é negociar com os sentimentos,

E eu ando.

Então descobri, que além de escrever

Pra estragar e consertar,

Posso caminhar e respirar o orvalho.

Então direi aos interessados

Que as lágrimas vieram da madrugada,

Das pessoas que entoavam preces nas esquinas,

E das que paravam em fila dupla pra fumar um cigarro.

E eu que não sabia que às vezes é preciso parar...

Eu cantei e esqueci que o dia veio

Pra que eu pudesse ver claramente a realidade.

Deitei e esperei a noite chegar

Pra sonhar aquilo que eu não consegui ver.

Insista, me disseram, nesse eterno espairecer.

Ontem eu insisti, e por volta das 20 horas eu morri.

Volto inadequada, insana e veloz pra lhe dizer

Que não dura, aqui, a hipocrisia,

Pois ela é cansativamente esmiuçada em segredo.

Ordem, calma e regresso.

No outro dia é preciso acompanhar a volta,

Mesmo que tardiamente:

Já que nem mesmo no caos eu me acho

Devido à minha incapacidade de lidar com o incoerente.

Maria Clara Dunck.

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