quinta-feira, 2 de novembro de 2006

Serras da Desordem

Como um filme pode mudar nossas vidas, nossa visão de mundo, invadir nossos pensamentos, nossas almas? Essas respostas foram-me todas respondidas após o fim da sessão do brasileiro Serras da Desordem, de Andréa Tonacci.
Tonacci era pra mim, um diretor desconhecido. Mesmo apesar de saber de sua importância para o cinema nacional, quando na década de 70, ele fazia um cinema bastante underground e por isso mesmo, nunca teve o hype de diretores da época que ganharam notoriedade como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Arnaldo Jabor.
Fato é que ele chega depois de um hiato de quase 30 anos - tempo em que se dedicou a este projeto - com uma das mais bonitas e essenciais obras-primas dessa Mostra e talvez de toda a história do cinema brasileiro.
Serras da Desordem é, antes de qualquer coisa, um lamento a essa civilização decadente, de valores completamente deturpados e invertidos, de um mundo que, em nome do progresso, deixou de olhar a vida e tudo o que dela vem.
Não bastasse ser o filme-vida que é, Tonacci, como cineasta e estudioso da linguagem cinematográfica, vai ainda muito além do que havia feito, por exemplo, Eric Khoo em seu Fica Comigo, ao misturar ficção e realidade. Isso porque, ao recontar a saga do índio Carapiru, Tonacci vai reencenar certos trechos de sua vida (com o próprio Carapiru, aliás). Utilizando-se de imagens documentais - que vão de filmes da época como o seminal Iracema: Uma Transa Amazônica de Jorge Bodanski, até imagens de Telejornais, também da época - busca refazer os passos daquele homem que, separado de sua tribo após um ataque de grileiros, vagou durante meses pela selva e, encontrado por camponeses, com eles viveu por um bom tempo. Mesmo sem entender uma só palavra do que diziam, fez grandes amigos, pessoas que lhe amaram, lhe deram carinho e cuidado. Após uma denúncia, é trazido pela FUNAI para Brasília, e lá, frente ao choque com a civilização, Carapiru aos poucos irá perder a fé na vida, no seu Deus maior. Por ironia do acaso, quando chamado um tradutor para conversar com o velho índio, este que vem é ninguém menos que seu filho, separado dele há 16 anos por criminosos invasores que expulsaram e assassinaram centenas de índios nas florestas desse Brasil. Carapiru será levado de volta a sua tribo, e lá vai perceber que o veneno da civilização e do progresso terá atingido seu povo. Tudo o que ele vivera ou sonhara não passa agora de uma utopia. Carapiru então desiludido e triste se embrenhará no meio da floresta, e lá, travará seu primeiro contato com Andréa Tonacci, num final de uma beleza que faz jus a esse impressionante filme que é Serras da Desordem.
Assim, o filme irá nos confrontar com essa realidade torpe de uma sociedade que, na busca pelo ócio através do progresso tecnológico, criou um imenso vazio espiritual, um distanciamento abissal do homem com a natureza, uma quebra de valores tão caros a esse planeta doente e carente de lamentos, que gritem por socorro, por um chamado divino, para que um dia nos possa vir a salvação. Talvez, vendo obras como essa, possamos despertar em nós, o desejo da mudança, da reavaliação de nossas vidas, nossas prioridades, nossos anseios, nossa verdade, nossos valores, nossa condição humana.
Tudo o que eu disser sobre esse impressionante filme nacional - mas que carrega consigo um teor imensamente global, pois no registro do microcosmos, abrem-se as portas para o macro – pode soar pequeno, bobo. Mas é sem dúvida o filme brasileiro a ser descoberto. Um filme que o mundo todo deveria ver. Me lembrou de certa forma O Novo Mundo de Terrence Malick, por ser um lamento semelhante. Com a diferença que aqui, a ficção e a realidade são uma coisa só! E o impacto disso em nós é infinitamente maior!

Cotação: * * * * *


Still Life

Jia Zhang-Ke, que recebeu o prêmio de melhor filme na Mostra passada pelo primoroso O Mundo, é talvez o mais promissor e respeitado cineasta contemporâneo. Foi há alguns anos quando descobri o seu belo Plataforma num festival aqui em Goiânia, porém, que meu olhar se voltou com grande interesse pelos seus trabalhos. Portanto, a estréia de uma obra como essa, após sua consagração com o Leão de Ouro no Festival de Veneza, parecia o grande acontecimento desse Festival. Sessão completamente lotada, ansiedade pipocando. Entretanto, logo no começo da projeção, algo estranho. A cópia, que havia sido divulgada pela organização da Mostra como sendo em 35 mm, estava em digital, com formato da tela errado, deformando os corpos dos atores e as linhas que compunham o filme, as cores distorcidas sem contraste, o som também. Só 40 minutos depois de já iniciada a sessão a janela foi alterada (a pedido de algum entendido que ali estava), mas a cópia, visivelmente tosca, ainda nos deixava apreensivos, por não poder estar de fato, diante da obra que consagrou Jia em Veneza.
A partir daí, todos os críticos de cinema que lá estavam, foram unânimes em excluir Still Life da programação como “o filme que não passou na Mostra”. Afinal, uma obra de arte deve ser apreciada em sua plenitude, sem qualquer alteração que desvirtue todo o trabalho impecavelmente concebido pelo seu autor.
Diante disso, eu, com meu olhar não tão rigoroso, me deixo embarcar pelo cinema de Jia. E não é um cinema qualquer. É arte plena de pensar o mundo via imagens, por mais clichê e batido que isso possa parecer. Still Life, nos seus movimentos de câmera lentos e que parecem levitar, serenos e calmos, é um cinema de meditação, de um transe formal delirante, de uma delicadeza impressionante. Jia pinta aqui sua natureza morta, mas sua arte, na morte, encontra a beleza da vida, dos seus pequenos momentos registrados com rara intensidade.
Still Life conta duas histórias sobre busca, encenadas numa cidade prestes a ser inundada para dar lugar à mega-usina hidrelétrica de Três Gargantas na China. Na primeira delas, um homem está em busca de sua filha, que foi levada por sua esposa há 16 anos. Na outra, uma mulher vai em busca do marido que saiu de casa em busca de trabalho há dois anos e nnca mais voltou. E nessa busca por seus amores perdidos, Jia no registrar daquele vilarejo, aos poucos sendo destruído para dar lugar aos anseios tecnológicos da humanidade, faz uma bela e profunda reflexão sobre o mundo em que vivemos. É uma ode triste a uma sociedade que coloca a evolução técnica, acima dos indivíduos, que atropela toda essa profusão de sentimentos humanos em face do progresso.
A princípio se dividindo em capítulos, que receberão os nomes, de “Cigarretes”, “Tea”, “Tofee” e “Liquer” - iguarias que um dos personagens, em troca de informações sobre a esposa e da simpatia das pessoas, irá oferecer - o filme irá aos poucos nos colocando dentro de um universo que, hora vai do banal, dos pequenos momentos do cotidiano, ao fantástico, em cenas que parecem atingir o sublime. É uma experiência rara de cinema, daquelas que te deixam marcas visíveis pra toda uma vida. É um filme que, na sua grandeza, nos permite ignorar o
descaso desse Festival e sua falha na exibição de uma cópia desfigurada, mas ainda sim viva, poderosa e capaz de nos elevar a um estado de graça transcendental.
É assim que termino esse dia imensamente gratificante, com obras tão distintas na sua forma, mas de pensamentos e intenções semelhantes. Serras e Still Life, são filmes que, vistos juntos, se complementam de maneira surpreendente. Obras de arte que elevam o cinema a um estado de pureza formidável. Nada menos que genial.

Cotação: * * * * *
Rafael C. Parrode
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1 comentário:

Anónimo disse...

Rafael, muito bom o comentário sobre Serras da Desordem. Sua empolgação com o filme ultrapassa o texto. Bem legal mesmo.