quarta-feira, 8 de novembro de 2006


Síndromes e um Século

Pouca gente sabe fazer um cinema tão único, tão rico e tão novo quanto Apichatpong Weerasethakul. Ele é um dos poucos cineastas contemporâneos que ainda fazem brilhar os olhos do espectador, com seus filmes tão cheios de frescor, de novidades, de surpresas. Lembro-me bem de ter visto Mal dos Trópicos - seu filme mais conhecido e premiado - uma daquelas obras-primas indefiníveis, tão autoconsciente na criação de um mundo extremamente peculiar, onde a câmera se move de outra maneira, os cortes vêm sempre nos momentos mais inesperados e a trama nunca importa. Joe - como é chamado em sua intimidade - faz um cinema de ambiências, de sentidos, em que cada imagem funciona quase que por si só, mas que, ao se unirem num todo, dão forma a uma obra surpreendente, imprevisível e nada menos que brilhante.
Com Síndromes e um Século, a impressão que se tem é que estamos diante de um OVNI, um filme diferente de tudo, um cinema estranho, mas ao mesmo tempo, tão impressionante e poderoso, que nos faz colocar Apichatpong entre os principais nomes do cinema contemporâneo.
Joe faz aqui uma espécie de autobiografia, filmando o que parece ser a vida de seus pais médicos, quando se conheceram em um Hospital no meio de uma floresta da Tailândia. Os pacientes são, em sua maioria, monges budistas que, por morarem perto, estão sempre se consultando por lá. Joe refina seu cinema a tal ponto que a impressão que se tem é a de estar diante de um mantra de imagens. Cada plano meticulosamente trabalhado pelo cineasta da a impressão de estarmos meditando, levitando no tempo e no espaço, num exercício hermético e vigoroso de cinema.
Apichatpong sempre fala das doenças do ser humano, sempre em contraponto com a natureza – ninguém filma o verde como ele – e o fascínio do homem pelos mistérios do mundo. E é exatamente isso que sentimos por Síndromes e Um Século. Um filme que da consciência monstruosa de seu autor ante o material filmado, e nas suas subversões estético/narrativas nos coloca diante de uma obra no mínimo sui generis e no máximo, genial.
Joe faz um cinema em que a imagem e os sentidos são os pilares para uma boa degustação de sua obra. Dessa forma, na junção de tudo isso, com o seu trabalho impecável de som, você pode se pegar no final da sessão em um estado de transe meditativo profundo. Afinal, a intenção de Weerasethakul é nos transportar para uma outra dimensão. Uma dimensão em que ele orquestra a magia da vida através dos pequenos momentos do cotidiano, inseridos em um mundo em que as regras são quebradas o tempo todo. Um filme seminal, assombroso e insólito. Mais uma obra-prima extremamente gratificante que tive o imenso prazer de poder ver nessa Mostra tão cheia delas.

Cotação: * * * * *

Juventude em Marcha

O digital nunca mais será o mesmo depois de Pedro Costa e sua seminal obra-prima Juventude em Marcha. Aqui, ele, num tratamento formidável da fotografia, através de planos fixos meticulosamente enquadrados, vai falar de gente, especificamente dos imigrantes cabo-verdanos que estão prestes a se mudar para o novo conjunto habitacional construído pelo governo.
Pedro Costa nos seus indefectíveis ensaios de textos sobre saudade e sobre o dia a dia e na sua relação profunda com a geometria dos espaços, eleva o seu cinema simples até não poder mais a um estado de refinamento artístico impressionante.
Muito disso vem da interpretação assombrosa de Ventura (não ator, interpretando a ele mesmo), um dos sem-tetos que estava para ser transferido para o tal conjunto habitacional. Ele é o eixo desse ensaio de poesias que tornam os homens cada vez mais homens e, por isso, mais fracos e covardes, mais saudosos e resignados, mais sábios e serenos. Juventude em Marcha é, talvez, a mais impressionante demonstração de que, pra se fazer cinema, basta sensibilidade, paixão e conexão com o que se quer filmar. E Pedro Costa agrega isso tudo num cinema bastante naturalista, impregnado de um lirismo estranho, mas profundamente belo.
Em Cannes o filme estreou na mostra competitiva e foi, sem dúvida, o choque estético do Festival. Porque Pedro Costa, bem ao modo do casal de cineastas Straub e Huilet (e seu ensaio de poesias em Gente da Sicília), filma o nada. Pouca coisa além de pequenos assuntos do dia-a-dia daquelas pessoas, que na sua banalidade, termina por nos retratar toda uma situação extremamente complexa que os imigrantes Africanos enfrentam na Europa. Além da poesia falada que irá costurar todo o filme, o cineasta português, utilizando-se dos mais imprevisíveis enquadramentos que colocam o homem perdido na geometria do espaço, na sua frieza, irá atingir o sublime, numa espécie de elogio à simplicidade. Um filme que, apesar de exigir um pouco do espectador, retribui de forma generosa, ao seu final, com um cinema cheio de frescor, pureza e sensibilidade.


Cotação: * * * * *

Rafael C. Parrode
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