domingo, 30 de dezembro de 2007

Síndrome do Fantástico... Ceia de Natal – por Frei Beto

No último domingo, não escrevi. Mas o belíssimo texto de Maria Cláudia sintetizou o que eu pensava nequeles dias. Depois, descansando em casa, atualizei minha leitura e vi esse texto de Frei Beto. Achei que poderia abrir mão de um texto meu e presenteá-los (independente de presente), principalmente para aqueles que não tiveram a oportunidade de acessar a Caros Amigos de dezembro/2007.

"A Missa do galo encerrou-se aos primeiros minutos de 25 de dezembro. Padre Afonso deixara-se contaminar pela aflição dos fiéis, ansiosos por retornarem ás suas casas e desfrutarem a ceia antes de as crianças murcharem de sono. Abreviou a homilia, pulou a oração, desejou a todos feliz Natal e deu-lhes a bênção final.

Dependurados os paramentos, padre Afonso viu-se sozinho em plena noite de Natal. O celibato é um dom e ele sabia tê-lo merecido. Ao longo de 20 anos de sacerdócio acometeram-lhe muitas tentações. Não era o fascínio das mulheres que o levava a duvidar de sua consagração. Perturbava-o a consciência do pai de nunca fora.

Naquela noite a solidão lhe bateu forte, com uma ponta de amargura advinda de uma expectativa frustrada. Nenhum dos paroquianos tivera a generosidade de convidá-lo à ceia. Revirou os embrulhos de cores brilhantes e encontrou o que bastava: um panetone e uma garrafa de vinho. Enfio-os na pasta para levar sacramentos aos enfermos e dirigiu-se à zona boêmia.

Shirley

Ela trazia os olhos inchados, o peito sufocado, o coração miúdo. Desde o fim da tarde chorara copiosamente ao recordar os natais de sua infância no norte de Minas. Lembrou da família que a repudiara, do marido que a abandonara, do filho que dela envergonhara. Sentiu ódio da vida, da desfortuna a que fora condenada.

Pudesse, não trabalharia naquela noite. Todavia, não lhe restava alternativa. O acúmulo de dívidas a obrigava a ir à rua. Mirou o homem de pasta na mão, camisa sem gola, sapatos escuros. Enquadrou-o na tipologia adquirida em tantos anos de calçada: tinha o jeito de ingênuo dos que buscam apenas aliviar-se e, na hora da cobrança, preferem ser generosos no pagamento a enfrentar uma prostituta irada disposta ao escândalo.

Trocaram olhares e ela se esforçou para estampar um sorriso sedutor. Ele a indagou; ela apontou o hotel. Caminharam em silêncio. Subiram as escadas onde as baratas se desviavam ariscas.

Ao vê-la abrir o primeiro botão da roupa, ele se adiantou. Explicou que não estava ali em busca de sexo, e sim de companhia. Haveria, contudo, de pagar-lhe o devido. Contou-lhe de seu sacerdócio e de sua solidão, e indagou se ela se dispunha a orar com ele a compartir a ceia.

Shirley sentou na cama, enfiou o rosto entre as mãos e desabou em prantos. Agora era um choro de alívio, de gratidão por algo que ela não sabia definir; quase que alegria.

Padre Afonso propôs fazerem uma oração. Ela se ajoelhou e ele tomou-a pela mão e fez com que se sentasse de novo. Ele ocupou a única cadeira do quarto. Abriu o evangelho de Lucas e leu o relato do nascimento de Jesus. Em seguida, perguntou se ela gostaria de receber a eucaristia. Shirley pareceu levar um chique. Como ela, uma puta, poderia receber a hóstia sem sequer ter se confessado? O sacerdote leu o texto de Mateus (21, 28): “As prostitutas vos precederão no Reino de Deus”. E acrescentou que eram ele e essa sociedade cínica, injusta, desigual que deveriam se confessar a ela e pedir perdão por a terem obrigado a uma vida tão degradante.

Após a comunhão, padre Afonso tirou dois copos da pasta, encheu-os de vinho e partiu o panetone. Os dois ainda conversavam sobre suas vidas enquanto clareava o dia".

Vida Longa

Marcelo "Russo" Ferreira

PS.: O texto foi publicado na coluna de Frei Beto, na Caros Amigos de dezembro (número 129).

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