terça-feira, 17 de julho de 2007

Pranto

''Socorro, não estou sentindo
Nada
Nem medo, nem calor, nem fogo,
Nao vai dar mais pra chorar
Nem pra rir.''
(Arnaldo Antunes)
Antes, seu pranto rolava solto. Ela sentia o peito expandir-se até quando ouvia o hino. A abertura dos jogos olímpicos a emocionava. Sua emoção estava sempre à flor da pele, seu riso e seu pranto eram plenos, quase viscerais.
Houve um tempo, distante dali, em que precisava colocar algum filme triste no aparelho para conseguir chorar. Havia dias que chegava a casa sabendo que precisava aliviar a dor, escolhia uma película, daquelas mais tristes, preparava um lanchinho frugal, derramava-se sobre as almofadas e entregava-se ao drama alheio. Choraaaaaava...chorava tanto, chegava a soluçar. Sentia aquela dor, como se fôra sua, e era...
Houve um tempo em que ela já não se emocionava mais. Ela até percebia - por meio da razão - a injustiça dos fatos e o clamor que causavam. Não se identificava, não via razão para a histeria. Nem a fome na África, nem o assassinato brutal da mãe de um amigo conseguiam fazê-la despir-se daquele olhar distante, quase frio. Olhava, via, virava-se e partia. As mortes, a fome e a dor alheias não a incomodavam, eram apenas colecionadas junto às reminescências, bem no fundo de si mesma.
Houve um momento em que quis saber porque os outros sentiam e ela não. Por que ela sentia nada?
Consultou muitos sábios, cientistas e magos. Foi até a montanha mais alta, foi às profundezas do oceano, nada encontrou que pudésse fazê-la entender. Deparou-se com uma bruxa boa, que a ensinou 'exercícios do sentir'. Praticava todos os dias, incansável, perseverante. Estava determinada a sentir algo. Pouco a pouco suas glândulas lacrimais, que já estavam sem funcionamento há anos, voltaram a funcionar. Primeiro timidamente, doía muito a garganta. Depois, com muito treino, foram ficando cada vez mais eficientes.
Houve um tempo, logo depois dos exercícios, que sentia tanta dor que chegava a urrar enquanto vertia lágrimas em abundância. A dor tomava conta de todo o seu ser e ela pranteava tal qual um animal ferido. Foi assim por trinta dias e trinta noites, até que seu coração se aquietou. Ouvia ao longe uma cantiga de ninar, sussurada com palavras ininteligíveis. Ouvia o barulho quieto do vento, que suavemente tocava-lhe as faces. Sentia um cansaço quase prazeiroso. Finalmente sentira o silêncio de si mesma.
Quis sentir mais, quis sentir algo além da dor. Entregou-se ao prazer e à paixão. Ela podia sentir paixão, ela podia sentir dor. Ela brincou na montanha-russa da paixão-dor-paixão. Ela riu e chorou, muitas e muitas vezes. Seus olhos brilhavam por satisfação ou pelas lágrimas derramadas, mas eles brilhavam. Ela estava viva. E o cansaço chegou, e o pranto venceu o riso, e a dor sobrepujou o prazer. Estava, de repente, imóvel no centro da sala, no centro do mundo. Sentia aquele cansaço conhecido, sentira novamente o silêncio. Ele era doce e estanque.
...E esse silêncio passou a acompanhá-la. Estava a seu lado, mantendo-a no mundo, a despeito da dor. Ele a acompanhava na solitude ou em meio à multidão. Em discursos, entrevistas e animadas conversas em rodas sociais - lá estava ele. Ela ria e lá estava o seu silêncio. Por vezes, rolavam uma ou duas lágrimas silenciosas, quietas em sua face lívida.
Maria Cláudia Cabral
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1 comentário:

Marcelo "Russo" Ferreira disse...

...
ao final do vale mais profundo, vem novamente o caminho da montanha. Dela, conseguir-se-á ver como era profundo o vale, e como foi bom chegar até lá... pois lindo é a vista dele nesta montanha...