“Foi uma alegria a notícia do primeiro cinema de Goiânia, que se chamou Santa Maria. Feito em 1939 às pressas e com pouco recurso, constou o cinema de sala enorme, tosca, sem declive algum. Quanto mais atrás se sentava, maior o sofrimento. Parece que para a aquisição das cadeiras, o critério adotado foi o ‘vale tudo’, porque havia cadeiras de tábuas, de palhinhas, de pés lisos, pés retorcidos, encosto alto, encosto mais baixo, de todo jeito enfim. Essas cadeiras eram soltas, independentes, sem ligação que as prendesse umas às outras. E isso, que pode parecer um defeito, para nós foi um benefício. É que podíamos afastá-las caso em nossa frente se sentasse uma pessoa avantajada. E nos dias de chuva é que a coisa funcionava. As goteiras eram muitas e estar dentro do cinema era quase o mesmo que estar do lado de fora. Cada qual procurava então, arrastar sua cadeira para os lugares mais secos e ninguém ouvia bulhufas do filme, porque o barulhão do arrasta pé não deixava”
Retirado das memórias datilografadas de Marilda de Godói, 82 anos, pesquisadora, membro da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás e moradora do Centro de Goiânia desde os 11 anos.
É uma tarde chuvosa de outubro. Estou dentro do carro procurando alguma coisa inexistente. Na verdade, quero tempo para criar coragem e entrar no cinema. Mas todo esse receio para se entrar numa simples sala de cinema? Não é qualquer um. Trata-se do Cine Santa Maria, o mais antigo cinema de Goiânia e há cerca de 15 anos, um dos cinemas pornôs mais famosos da cidade. Infelizmente, a coragem não foi suficiente. Mesmo sabendo que a matéria deveria ser entregue em menos de uma semana.
Um dia se passa e estou eu novamente no mesmo lugar, estacionado a poucos metros do estabelecimento. Dessa vez estou acompanhado de mais dois colegas de jornalismo que me abstenho de citar os nomes. Um deles me grita lá de fora dizendo para sair do carro. Não há motivos para tanto nervosismo. Afinal, que mal há em entrar num cinema cujos filmes exibidos não são os que normalmente estão em cartaz nos cinemas do shopping? Se encontrasse com alguém ali eu poderia muito bem me passar por intelectual e dizer que estava fazendo uma pesquisa etnográfica. Mas pensando bem, a pessoa que também estivesse ali estaria mais constrangida que eu.
Saio do carro e vou andando rumo à entrada. Por pouco não passo reto. Se não fosse um puxão dado na hora certa, essa pauta já estaria caída a algum tempo. Na recepção há um pequeno número de funcionários. Um na bilheteria e três na roleta. Procurei não pensar no que os três imaginaram de nós. Fingi dar uma olhada na programação e escolhi um dos três filmes que estavam anunciados no momento. Cometo minha primeira gafe. Num cinema pornô, você não compra as entradas individuais. Você compra uma espécie de passaporte que te dá direito a assistir a todos os filmes. Corrigido o erro e alguns sorrisos sem graça depois, estamos nós passando pela catraca que, pra piorar a situação, trava, fazendo com que essa, que deveria ser uma travessia rápida, dure alguns minutos e prolongue o constrangimento.
Resolvido o problema com a roleta, caminhamos rumo à sala. No hall de entrada vejo um freezer de cerveja no local onde deveriam ser vendidas pipocas e jujubas. Pelo menos uma coisa o cinema pornô tem de melhor em relação ao cinema tradicional: vendem-se cervejas. Igual aos cinemas europeus. Preferi não tomar nenhuma, apesar de que talvez o álcool pudesse aliviar um pouco a tensão do ambiente.
Já estávamos dentro da sala. Ela é um pouco mais clara do que nos cinemas comerciais. O som é bem razoável. Ouvem-se os gemidos dos atores com clareza. Algumas modificações foram feitas da época em que ele era freqüentado por Marilda de Godói, até atualmente. No lugar das cadeiras móveis foram colocadas poltronas acolchoadas e imóveis. Sentar nelas? Não, obrigado. Estou bem em pé.
O cinema não estava muito freqüentado. Havia um grupo de travestis que circulava pela sala animadamente. Outras estavam acompanhadas nas cadeiras. Infelizmente, de algumas delas não pudemos ver o rosto. Também em pé, mas escorados nas paredes, havia homens de todos os tipos. Alguns bem caricatos. Outros que certamente estavam ali clandestinamente. Havia também vários que ainda estavam com o uniforme de trabalho. Por motivos óbvios, não encontramos nenhuma mulher lá dentro.
Uma coisa me chamou a atenção. Se o local era com certeza um ambiente freqüentado por homossexuais, por que os filmes exibidos eram heterossexuais? Até os cartazes na entrada comprovavam que toda a programação do dia era hetero. Não consigo acreditar em nenhuma outra explicação que não seja a de que até os cinemas pornôs ainda são moralistas. Infelizmente.
O contato entre as pessoas é muito rápido. Não mais que algumas poucas palavras. Talvez nenhuma palavra. Os que se entendiam iam direto para algum lugar mais reservado para se entenderem ainda melhor. A sala cheira a sexo. O nível de insalubridade é muito grande. Não sei como um ambiente daqueles conseguiu o alvará da Vigilância Sanitária.
Alguns minutos depois saímos da sala. Cheguei à conclusão que tudo o que precisaria para escrever esse relato já tinha obtido. Além disso, alguns olhares cobiçosos começaram a se direcionar ao nosso rumo. É melhor evitar problemas. Afinal, nós que estávamos invadindo o local e ninguém sabia que nosso objetivo ali era buscar informações para uma matéria jornalística. Nem tão jornalística, na verdade.
Enfim, após essa visita ao Cine Santa Maria, posso ter certeza que o cinema freqüentado pelos pioneiros de Goiânia já não existe mais. Assim como aconteceu com todo o Centro, a degradação já chegou às salas cinematográficas mais antigas há algum tempo. Assim como o Santa Maria, existem pelo menos mais dois outros cinemas que se tornaram pornôs. Os que não viraram pornôs, viraram igrejas. Então, para quem quiser assistir um filme mais “família”, é melhor procurar o shopping mais próximo.
Cine Santa Maria
Endereço: Rua 24, quase esquina com a Anhanguera
Horários: das 13 às 20 horas
Preço – R$: 6,00
Classificação etária de todos os filmes: 18 anos
Paulo Henrique dos Santos
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7 comentários:
Amei seu texto. Sua experiência de reportagem foi fantástica. O jornalismo é isso também, ir aonde os fatos estão, sem preconceitos. Despindo-se da hipocrisia social. O jornalista é antes de tudo um observador dos fatos, um narrador dos fatos. Particularmente, acho que não cabe ao jornalista juízo de valor, cabe mostrar a realidade e deixar aos seus leitores a liberdade de concluir por si mesmos o que é e o que não é...
Há filmes família no cine Ritz da rua 8. No cinema, vc encontra filmes comerciais em duas salas. No domingo, tem sessão pipoca as 11h, com filmes de desenho atraindo uma multidão de crianças e ainda ganham pipoca.
Nos decadentes cinemas pornos, há striptease, prostituição, além de um submundo cheio de libidos incontroláveis, favorecendo o sexo sem compromisso como meio de extravazar o que se canalizava do desejo reprimido imposto pela moral/sociedade.
Não entendi para que tanto pudor pra entrar no cinema, ficou parecendo um grupo de mocinhas pudoradas. É preciso dizer tb que, ao contrário do que está escrito na matéria, não é preciso necessariamente procurar um cinema de shopping para assistir um filme "família". Ali pertinho mesmo, no centro, tem o Cine Cultura e o Cine Ouro, que são cinemas que passam filmes bons.
UM POUCO HIPÓCRITA A MATERIA. É COMO SE QUIZESSE JUSTIFICAR QUE NÃO FREQUENTA AMBIENTES PIORES E POR RAZÕES MAIS EXCUSAS AINDAS. A DIFERENÇA ENTRE OS QUE SE SENTEM A VONTADE NESTE AMBIENTE COM O QUE QUERIAM PASSAR COMO SUPOSTOS VISITANTES DE PRIMEIRA VIAGEM E SOMENTE O CONSTRANGIMENTO DE QUE JA TINHAM SE VISTO ANTES.
Vc disse que o cinema tinha um cheiro de sexo no ar. Natural pois o esperma tem cheiro caracteristico. E vc já detectou de inicio...
Fiquei abismada com os comentarios da Senhora Marilda,pois sendo uma pesqisadora ter pudores em entrar em um cine porno.Oras se sabia que era porno então porque entrou,se era pesquisadora então estava na profissão errada.Penso que ela foi infeliz em seus comentarios tinha sim é que falar de como foi bom ter um cinema em nossa cidade no começo de goiania e tudo foi feito com muito sacrificio.Se hoje se tornou um cinema porno são coisas que acontecem,os tempos mudaram e este tipo de preconceito nos dias atuais chega a ser vergonhoso.Ainda bem que podemos ter livre acesso ir e vir de Shopping ou cinema porno sem falso moralismo e nem ficar se escondendo para se fazer o que quer das pessoas com as mesmas concepções ultrapassadas
Voce estava fazendo uma pesquisa para um trabalho escolar coreto ... nada mais que justo em falar que na sua escola pode estudar o dono desse cinema , e ele pode andar em um carro que você estudando e se dando muito bem na vida jamais vai possuir , e mais , coisas piores as que acontcece no cinema santa maria , pode acontecer com os frequentadores do seu curso .
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