Quem nunca viu um filme dos irmãos Dardenne, não imagina o quão rico e forte é o cinema que eles criaram ao longo de suas carreiras. Vencedores da Palma de Ouro em Cannes em 2000 pelo belíssimo Rosetta, eles retornaram ao Festival em 2002 com mais uma obra-prima, O Filho, desta vez, levando apenas o prêmio de ator para o excepcional Olivier Gourmet. Não bastasse, em 2005 - ano em que a seleção de Cannes primava por autores consagrados como: Cronemberg, Jarmusch, Michael Haneke, Amos Gitai, Hou Hsiao Hsien, Carlos Reygadas, Win Wenders, Gus Van Sant e Lars Von Trier - os Dardenne e seu cinema humanista e moral (mas nunca moralista), sabiamente foram mais uma vez premiados pelo júri, presidido por Emir Kusturica, por sua mais nova obra-prima A Criança, que entra agora em cartaz em Goiânia no Cine Cultura.
Os irmãos belgas fazem um cinema de câmera na mão, sempre muito próxima dos atores. Em O Filho, ela estava nas costas do personagem de Olivier Gourmet, como se ele estivesse carregando um peso, e isso fazia toda uma diferença naquela história forte que eles contavam. Aqui, ela acompanha a respiração dos personagens, se afastando ou se aproximando dos corpos de acordo com suas ações. É um estilo que às vezes lembra Bresson, neste que é, aliás, um Pickpocket bem “dardenneano”.
E A Criança não poderia ser nome mais certeiro. Certeiro, porque os irmãos nos colocam num universo basicamente pós-adolescente, em que os jovens, nessa transição para o mundo adulto, nessa sociedade cada vez mais materialista, parecem crianças, infatilizadas, frágeis.
Sonia acabou de ter um filho. Bruno, seu namorado, vive de pequenos furtos e diz que trabalho é coisa de babaca. Um dia, Bruno resolve vender o filho para a adoção. Os Dardenne começam seu filme assim: direto e reto, com Sonia e seu bebê nos braços, acabando de sair da maternidade. E a impressão que se tem é que o filme será sobre Jimmy, filho do casal de jovens. Mas os irmãos, lá pelo meio do filme, se permitem uma troca inesperada de protagonistas. Na verdade, A Criança do título é Bruno, que irá atravessar o inferno em busca de redenção. É por isso que digo que o cinema dos cineastas belgas é moral, mas nunca moralista. Bruno fará suas escolhas e, conseqüentemente, pagará por elas. Mas os Dardenne em momento algum irão julgá-lo, e sim observá-lo. E por isso, o tempo nesse filme parece ser tão importante, porque é com ele que Bruno, através de seus olhos e da consciência de seus atos, irá se tornar cada vez menos um objeto e mais um ser humano. Ao passo que seu filho, que solta apenas um choro na primeira cena do filme, irá cada vez mais parecer uma mercadoria, um pacote. Os Dardenne, nessa inversão forte de papéis, parecem ir além, injetando vida em elementos como um carrinho de bebê e uma motocicleta, nos confrontando ainda mais com essa questão do homem/objeto.
Como em Bresson, os pequenos gestos, os pequenos detalhes, podem significar bastante. E A Criança se sustenta dessa forma: construindo com muita delicadeza e profundidade, toda a lógica desse mundo capitalista, em choque com o ser humano. São muitas as cenas em que os Dardenne transbordam seu filme de possibilidades, interpretações. E o final é a conclusão perfeita para a obra impressionante que é L’Enfant. Bruno, em uma odisséia em busca de sua humanidade, ao final encontrará sua redenção. E os irmãos cineastas redentores que são, irão com isso, criar um belo manifesto humanista, tentando nos mostrar que, apesar de vivermos em um mundo em que o capital parece estar sempre à frente do índivíduo, ainda somos humanos. Triste, mas sublime!
Rafael C. Parrode
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