quinta-feira, 2 de novembro de 2006

Mostra SP de Cinema: Quarto Dia.

Um dia para Manoel: A Bela da Tarde, Conversas no Porto e Sempre Bela.

Hoje era dia de se dedicar a Manoel de Oliveira e seu mais novo filme Belle Toujours, ainda inédito na Mostra. Portanto foi programada sessão tripla que se iniciava com o clássico de Luís Buñuel, A Bela da Tarde, seguido pelo documentário Conversas no Porto - Com Manoel de Oliveira e Agustina Bessa-Luís e se concluiria com Sempre Bela. A maratona pré Belle Toujours era uma experiência pra se tentar compreender o artista profundamente instigante que é Manoel de Oliveira, desta vez, em homenagem ao cineasta Luís Buñuel, seu roteirista Jean Claude Carriére e seu clássico Belle de Jour.
Primeiro fato: rever a Bela da Tarde em tela grande, e cópia original vinda da cinemateca do Rio é uma experiência forte, essencialmente a mesma de se ouvir um vinil do Pink Floyd. É o pouco que tenho a falar sobre essa obra-prima deflagradora que é o filme de Buñuel.
Eis que se inicia então Conversas no Porto. Dirigido por Danielle Serge que aqui, assume o papel de simples e humilde registradora daquele momento histórico: o encontro de duas personalidades como o cineasta português de 97 anos, Manoel de Oliveira e a escritora Agustina Bessa-Luís, 84 anos, que teve alguns de seus livros adaptados para o cinema por Manoel (Princípio da Incerteza e Espelho Mágico). Aqui, eles conversam sobre cinema, literatura, música, Europa, Brasil, memória, saudade, vaidade, progresso... vida. Mas o que impressiona é mesmo a força, a lucidez e a curiosidade que ambos têm pelo mundo. Agustina certa hora diz que, se não fosse escritora, seria investigadora de polícia, tamanha é sua necessidade de se questionar as pequenas coisas da vida, e por isso, mais cheias de segredos e surpresas. Noutro momento, diz que nasceu adulta e vai morrer criança, e essa é a diese da impressão que se tem daquelas duas pessoas que na velhice encontraram a plenitude. Manoel, que sempre havia sido exemplo de artista e de vida pra mim, agora já era um herói. E assim chegamos ao momento chave do dia. A sala lotada de “manoeléfilos” estava pronta para ver Belle Toujours – Sempre Bela. Prontos? Ora, ninguém nunca está pronto pra um filme de Manoel de Oliveira.
Se em A Bela da Tarde o filme se centrava e Sevérine (Catherine Deneuve), aqui, 40 anos depois, o foco é Hussom (Michel Piccoli ainda mais inspirado que no primeiro filme). Manoel, que abre seu filme com o espetáculo de uma orquestra, onde os personagens se virão pela primeira vez, fará, a partir de então, um jogo de gato e rato em que Hussom irá perseguir Sevérine (Ulle Orgier, que não deve em nada para Deneuve) pela cidade de Paris, e ela atordoada, irá fugir daquele encontro. Nesse momento, Manoel ainda elege outra protagonista pra seu filme, e ela é Paris, seus monumentos, suas luzes... Hussom irá procurar por Sevérine em um bar e lá, após algumas doses de whisky, contará toda a história da bela da tarde ao barman (Ricardo Trepa), ao mesmo tempo em que será abordado por duas prostitutas (Júlia Buisel e a sempre encantadora Leonor Baldaque).
Mas é na segunda metade, quando os dois se encontram por acaso em uma loja de uma esquina de Paris, e Hussom coage Sevérine para um jantar, com a desculpa de revelar a ela se ele havia contado a seu marido sobre seu passado, que Manoel irá começar a destilar toda a sua perversidade e sarcasmo. Durante o jantar, Hussom, que mais parece um mestre de cerimônias sadô-maso, começa a alfinetar Sevérine. Manoel filma o jantar como uma cerimônia da gula e do gozo: primeiro eles comem, e a câmera elegante registra aquela refeição com um prazer absoluto. Depois Hussom, utilizando-se de seu sadismo, irá envolver Séverine num jogo psicológico em que ambos irão rever suas vidas, 40 anos depois de seu ultimo encontro. Mas ele em momento algum saciará suas dúvidas, num final com direito a uma cena surreal a lá Buñuel, talvez único link formal que Manoel irá travar com ele.
Buñuel investigava seus personagens de maneira ontológica, provocando-nos a todo o tempo, utilizando do escândalo pra falar da mulher reprimida da década de 60. Manoel, por sua vez, parece querer compreender - bem à sua maneira - historicamente, todo aquele imaginário, nos brindando com uma obra extremamente jovial, singular e dona de si. Seu cinema é o da elegância, da simplicidade, da limpidez. Por isso, Belle Toujours é um filme tão estranho. Porque na sua proposta de se fazer uma homenagem, ele vai além. Fazendo um cinema que busca o tempo todo pelo gozo. E esse gozo no final, virá menos pelo seu anticlímax (que por si só já é um gozo) e mais pelo estatuto da imagem que Manoel quer discutir. É um filme livre de grandes pretensões, em que o cineasta parece exercitar sua meninice, sua transparência. Exatamente por isso, a pequena duração - 68 minutos - parece destacar ainda mais essa busca de Manoel pelo pequeno, pelo banal, e dele retirar o seu máximo. Assim como Einstein, que da pequeneza de um átomo fez criar a bomba atômica, Manoel, de um oceano, retirou um grão de areia, e desse grão fez toda uma praia, linda e instigante. E é dessa forma que surge esse cineasta que aos 97 anos, chega esbelto, vigoroso e delicadamente perverso em mais uma de suas muitas obras-primas.

Cotação:
A Bela da Tarde: * * * * *
Conversas no Porto: * * *
Belle Toujours: * * * * *

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