O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias
Impressionante como a Mostra nos proporciona olhares tão distintos e ao mesmo tempo tão próximos a cada filme. Se o universo infantil havia sido registrado de maneira sublime pelas lentes de um cinema italiano forte e cheio de personalidade com Anche Libero Va Bene, desta vez é em um filme nacional que esse olhar irá se expandir e se complementar de maneira encantadora e surpreendente no belíssimo O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, dirigido por Cao Hamburguer (de Castelo Rá-Tim-Bum).
Me intrigou bastante perceber que, em meio a tantas tentativas (frustrantes) de se falar de um período tão conturbado da história do Brasil como a Ditadura - Sonhos e Desejos, Zuzu Angel, Cabra-Cega, O Que é Isso Companheiro - que um filme com um olhar basicamente infantil, seja de longe, o mais forte e bonito deles. Hamburger impressiona no registro impecável de sua câmera, ao recriar o ano de 1970, em que o pequeno Mauro é deixado pelos pais (fugitivos do governo militar) na casa do avô, que subitamente morre, antes mesmo de sua chegada, e é acolhido pela comunidade judaica de um bairro de São Paulo. O diretor em momento algum impõe qualquer reação ao seu protagonista. Ele conhece como poucos esse universo, e por isso capta de maneira sublime os pequenos acontecimentos do cotidiano daquele bairro, dos costumes daquela gente tão estranha aos olhos do garoto, e principalmente, da transformação que Mauro irá sofrer ao longo desse ano.
Hamburger demonstra imenso domínio da misé-en-scene, seja na composição dos quadros, na belíssima utilização dos reflexos em espelhos, janelas e TVs, até na simples e muito inteligente reconstituição de época que dá ainda mais credibilidade ao filme. Mas ele ainda vai além ao reconstruir a identidade daquela criança lidando com ausência dos pais, descobrindo o mundo à sua volta, um mundo novo, nunca antes desbravado.
"O Ano..." é junto com O Céu de Suely, o filme nacional de 2006, impecável no seu registro, na sua composição, no seu olhar aguçado e livre de amarras. Radiografando todo aquele ambiente brilhantemente; do apartamento do avô, ao bar em que todos se reúnem para assistir aos jogos da Copa, todo aquele espaço recebe enorme atenção do cineasta, sempre o registrando a fim de, cada vez mais, investigar seus personagens e nos brindar com momentos incríveis de puro cinema.
Foi sem dúvida até aqui, o mais aplaudido dentre os filmes que vi nesta mostra, pois na sua simplicidade e sensibilidade, parece conseguir dialogar com o público da maneira mais humana e próxima possível, nos colocando ao lado de sentimentos que em momento algum parecem forçados ou impostos. Gratificante, sincero e extremamente dono de si. São esses alguns dos adjetivos que encontro agora para falar desse filme inesquecível que é O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias.
Estréia dia 2 de novembro!
Cotação: * * * *
Fica Comigo
Filme do cingalês Eric Khoo, Fica Comigo abre com os dizeres: “inspirado na vida e autobiografia de Theresa Chan”. Esse é um dado imensamente importante pra se entender o quão ambicioso é este filme. A primeira cena mostra alguém (que não sabemos a princípio quem seja) escrevendo um texto sobre amor e perda. E em seguida, Khoo abre as portas de seu filme para que seus personagens comecem a vagar silenciosamente pela tela. Duas garotas apaixonadas que trocam mensagens de amor pelo celular e pela internet, um segurança que persegue pelo monitor de TV do prédio em que trabalha, todos os passos da bela mulher por quem se apaixonara, e um velho, excelente cozinheiro, que acompanha a esposa em estado terminal em um Hospital.
É depois de apresentar cada um de seus personagens fictícios, que Khoo dá seu tiro de misericórdia e revela a pessoa por trás da máquina de escrever. Ela é Theresa Chan, ela mesma em quem o filme se inspira, cega e surda, às voltas com a conclusão de sua autobiografia. Numa assombrosa fusão entre ficção e realidade, o diretor aos poucos irá fazer cruzar os caminhos de todas aquelas pessoas.
Chan é sem dúvida um exemplo de vida e superação, e Khoo não impõe a ela um texto ou qualquer coisa formatada. Ele simplesmente registra seu dia-a-dia como professora em uma escola para crianças cegas, suas idas ao supermercado com uma das várias pessoas que a ajudam, e os momentos em que escreve seu livro em casa.
Nesse sentido (da narrativa fragmentada em que vários personagens aparentemente desconexos irão por algum motivo se encontrar), Khoo se assemelha ao que faz Iñarritu com seus Amores Brutos, 21 Gramas e Babel, mas há uma imensa diferença na distribuição das peças nesse jogo de cinema de cada diretor. Enquanto Iñarritu impõe o absurdo pra fazer com que seus personagens se encontrem, Khoo lhes coloca apenas diante pequenos dramas do cotidiano, o que carrega ainda mais seu filme de humanidade e força.
Apesar de algumas conclusões da trama não serem plenamente satisfatórias, Fica Comigo impressiona por misturar de maneira, acredito eu, inédita, ficção e realidade de uma forma incrível. Da metade pra frente, Theresa Chan passa a ser o centro do filme, dona de todo ele. E seu exemplo de vida, em momento algum servirá como pretexto moralista para julgar os personagens fictícios da trama, o que poderia transformar o filme em uma obra de auto-ajuda. Ao final, já arrebatado pela força de Fica Comigo, uma mulher ao meu lado comenta que, ainda bem existem mostras como essa para nos colocar frente a frente a essas raridades. Verdade!
Cotação: * * * *
Impressionante como a Mostra nos proporciona olhares tão distintos e ao mesmo tempo tão próximos a cada filme. Se o universo infantil havia sido registrado de maneira sublime pelas lentes de um cinema italiano forte e cheio de personalidade com Anche Libero Va Bene, desta vez é em um filme nacional que esse olhar irá se expandir e se complementar de maneira encantadora e surpreendente no belíssimo O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, dirigido por Cao Hamburguer (de Castelo Rá-Tim-Bum).
Me intrigou bastante perceber que, em meio a tantas tentativas (frustrantes) de se falar de um período tão conturbado da história do Brasil como a Ditadura - Sonhos e Desejos, Zuzu Angel, Cabra-Cega, O Que é Isso Companheiro - que um filme com um olhar basicamente infantil, seja de longe, o mais forte e bonito deles. Hamburger impressiona no registro impecável de sua câmera, ao recriar o ano de 1970, em que o pequeno Mauro é deixado pelos pais (fugitivos do governo militar) na casa do avô, que subitamente morre, antes mesmo de sua chegada, e é acolhido pela comunidade judaica de um bairro de São Paulo. O diretor em momento algum impõe qualquer reação ao seu protagonista. Ele conhece como poucos esse universo, e por isso capta de maneira sublime os pequenos acontecimentos do cotidiano daquele bairro, dos costumes daquela gente tão estranha aos olhos do garoto, e principalmente, da transformação que Mauro irá sofrer ao longo desse ano.
Hamburger demonstra imenso domínio da misé-en-scene, seja na composição dos quadros, na belíssima utilização dos reflexos em espelhos, janelas e TVs, até na simples e muito inteligente reconstituição de época que dá ainda mais credibilidade ao filme. Mas ele ainda vai além ao reconstruir a identidade daquela criança lidando com ausência dos pais, descobrindo o mundo à sua volta, um mundo novo, nunca antes desbravado.
"O Ano..." é junto com O Céu de Suely, o filme nacional de 2006, impecável no seu registro, na sua composição, no seu olhar aguçado e livre de amarras. Radiografando todo aquele ambiente brilhantemente; do apartamento do avô, ao bar em que todos se reúnem para assistir aos jogos da Copa, todo aquele espaço recebe enorme atenção do cineasta, sempre o registrando a fim de, cada vez mais, investigar seus personagens e nos brindar com momentos incríveis de puro cinema.
Foi sem dúvida até aqui, o mais aplaudido dentre os filmes que vi nesta mostra, pois na sua simplicidade e sensibilidade, parece conseguir dialogar com o público da maneira mais humana e próxima possível, nos colocando ao lado de sentimentos que em momento algum parecem forçados ou impostos. Gratificante, sincero e extremamente dono de si. São esses alguns dos adjetivos que encontro agora para falar desse filme inesquecível que é O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias.
Estréia dia 2 de novembro!
Cotação: * * * *
Fica Comigo
Filme do cingalês Eric Khoo, Fica Comigo abre com os dizeres: “inspirado na vida e autobiografia de Theresa Chan”. Esse é um dado imensamente importante pra se entender o quão ambicioso é este filme. A primeira cena mostra alguém (que não sabemos a princípio quem seja) escrevendo um texto sobre amor e perda. E em seguida, Khoo abre as portas de seu filme para que seus personagens comecem a vagar silenciosamente pela tela. Duas garotas apaixonadas que trocam mensagens de amor pelo celular e pela internet, um segurança que persegue pelo monitor de TV do prédio em que trabalha, todos os passos da bela mulher por quem se apaixonara, e um velho, excelente cozinheiro, que acompanha a esposa em estado terminal em um Hospital.
É depois de apresentar cada um de seus personagens fictícios, que Khoo dá seu tiro de misericórdia e revela a pessoa por trás da máquina de escrever. Ela é Theresa Chan, ela mesma em quem o filme se inspira, cega e surda, às voltas com a conclusão de sua autobiografia. Numa assombrosa fusão entre ficção e realidade, o diretor aos poucos irá fazer cruzar os caminhos de todas aquelas pessoas.
Chan é sem dúvida um exemplo de vida e superação, e Khoo não impõe a ela um texto ou qualquer coisa formatada. Ele simplesmente registra seu dia-a-dia como professora em uma escola para crianças cegas, suas idas ao supermercado com uma das várias pessoas que a ajudam, e os momentos em que escreve seu livro em casa.
Nesse sentido (da narrativa fragmentada em que vários personagens aparentemente desconexos irão por algum motivo se encontrar), Khoo se assemelha ao que faz Iñarritu com seus Amores Brutos, 21 Gramas e Babel, mas há uma imensa diferença na distribuição das peças nesse jogo de cinema de cada diretor. Enquanto Iñarritu impõe o absurdo pra fazer com que seus personagens se encontrem, Khoo lhes coloca apenas diante pequenos dramas do cotidiano, o que carrega ainda mais seu filme de humanidade e força.
Apesar de algumas conclusões da trama não serem plenamente satisfatórias, Fica Comigo impressiona por misturar de maneira, acredito eu, inédita, ficção e realidade de uma forma incrível. Da metade pra frente, Theresa Chan passa a ser o centro do filme, dona de todo ele. E seu exemplo de vida, em momento algum servirá como pretexto moralista para julgar os personagens fictícios da trama, o que poderia transformar o filme em uma obra de auto-ajuda. Ao final, já arrebatado pela força de Fica Comigo, uma mulher ao meu lado comenta que, ainda bem existem mostras como essa para nos colocar frente a frente a essas raridades. Verdade!
Cotação: * * * *
Fora do Jogo
O cineasta Jafar Panahi (de O Balão Branco, O Círculo e O Espelho), aproveita o jogo que classificaria a seleção do Irã para a Copa da Alemanha, e ao modo do já consolidado realismo iraniano, contará a estória de uma garota que se veste de homem para tentar ver o decisivo jogo da classificação da seleção no estádio, onde só é permitida a entrada de homens. Como o título já diz, a menina ficará de fora junto com mais outras 5 garotas que, da mesma maneira foram descobertas de seus disfarces e são mantidas presas pelos policiais até que o jogo termine e elas seja encaminhadas para a delegacia.
Panahi usa não-atores, e todos eles conseguem imprimir grande verdade ao filme. Aos poucos, o Fora do Jogo irá, com muito bom-humor, explorar a situação da mulher iraniana dentro daquela sociedade machista. O cineasta, assim como seu mestre Abbas Kiarostami, parece ter grande interesse nessa análise do papel da mulher no Oriente Médio, e por isso ele o faz com grande sensibilidade e categoria. Mas não podemos esquecer que Kiarostami já havia falado sobre o assunto de forma profunda e sublime com o seu formidável Dez.
Confesso que o cansaço brutal desse terceiro dia de Mostra não ajudou muito na minha relação com o filme. É ainda assim, uma obra importante, de um cineasta que se, em seus primeiros filmes parecia andar na sombra de seu mestre (Kiarostami), prova nesse novo trabalho que é capaz, muito bem, de andar com as próprias pernas.
Cotação: * * *
O cineasta Jafar Panahi (de O Balão Branco, O Círculo e O Espelho), aproveita o jogo que classificaria a seleção do Irã para a Copa da Alemanha, e ao modo do já consolidado realismo iraniano, contará a estória de uma garota que se veste de homem para tentar ver o decisivo jogo da classificação da seleção no estádio, onde só é permitida a entrada de homens. Como o título já diz, a menina ficará de fora junto com mais outras 5 garotas que, da mesma maneira foram descobertas de seus disfarces e são mantidas presas pelos policiais até que o jogo termine e elas seja encaminhadas para a delegacia.
Panahi usa não-atores, e todos eles conseguem imprimir grande verdade ao filme. Aos poucos, o Fora do Jogo irá, com muito bom-humor, explorar a situação da mulher iraniana dentro daquela sociedade machista. O cineasta, assim como seu mestre Abbas Kiarostami, parece ter grande interesse nessa análise do papel da mulher no Oriente Médio, e por isso ele o faz com grande sensibilidade e categoria. Mas não podemos esquecer que Kiarostami já havia falado sobre o assunto de forma profunda e sublime com o seu formidável Dez.
Confesso que o cansaço brutal desse terceiro dia de Mostra não ajudou muito na minha relação com o filme. É ainda assim, uma obra importante, de um cineasta que se, em seus primeiros filmes parecia andar na sombra de seu mestre (Kiarostami), prova nesse novo trabalho que é capaz, muito bem, de andar com as próprias pernas.
Cotação: * * *
Honra de Cavalaria
Honra de Cavalaria foi o responsável pelo meu primeiro surto físico/emocional deste Festival. Como bem disse Albert Serra na apresentação de seu filme, esta é uma obra que exige acima de tudo, paciência, o que, convenhamos, após uma avalanche de 12 filmes, todos eles de digestão nada fácil, não era tarefa das mais fáceis.
Portanto não me acho digno de dizer se o filme é bom ou ruim. Seguindo duas figuras famosas da literatura, Dom Quixote e Sancho Pança, o filme de Serra em momento algum parece estar interessado em suas aventuras. É cinema contemplativo ao extremo, de tempo, luz, som e espaço. Os diálogos são raros, e quando aparecem, são exaltações de Quixote à natureza, à vida, a Deus. Nada mais que isso. É impressionante por filmar o escuro - com pouca ou nenhuma luz, fato que pode irritar às vezes - na sua relação íntima com o tempo, no trabalho impecável de som.
Mas é, sem dúvida, um filme extremamente consciente de si, mesmo que em sua maior parte, essa consciência vá contra o filme.
Não pretendo divagar tanto sobre ele. É uma obra que pede revisões com certa calma, mesmo que ainda saiba que elas serão duras, assim como o filme é! É chato, penoso, mas repleto de boa qualidade. Experiência árida. Mas me fez pensar, que se Cervantes, ao invés de escrever, filmasse seu clássico Dom Quixote, ele seria algo parecido com esse aqui.
Cotação: * *
Honra de Cavalaria foi o responsável pelo meu primeiro surto físico/emocional deste Festival. Como bem disse Albert Serra na apresentação de seu filme, esta é uma obra que exige acima de tudo, paciência, o que, convenhamos, após uma avalanche de 12 filmes, todos eles de digestão nada fácil, não era tarefa das mais fáceis.
Portanto não me acho digno de dizer se o filme é bom ou ruim. Seguindo duas figuras famosas da literatura, Dom Quixote e Sancho Pança, o filme de Serra em momento algum parece estar interessado em suas aventuras. É cinema contemplativo ao extremo, de tempo, luz, som e espaço. Os diálogos são raros, e quando aparecem, são exaltações de Quixote à natureza, à vida, a Deus. Nada mais que isso. É impressionante por filmar o escuro - com pouca ou nenhuma luz, fato que pode irritar às vezes - na sua relação íntima com o tempo, no trabalho impecável de som.
Mas é, sem dúvida, um filme extremamente consciente de si, mesmo que em sua maior parte, essa consciência vá contra o filme.
Não pretendo divagar tanto sobre ele. É uma obra que pede revisões com certa calma, mesmo que ainda saiba que elas serão duras, assim como o filme é! É chato, penoso, mas repleto de boa qualidade. Experiência árida. Mas me fez pensar, que se Cervantes, ao invés de escrever, filmasse seu clássico Dom Quixote, ele seria algo parecido com esse aqui.
Cotação: * *
Rafael C. Parrode
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