Uma das coisa mais bacanas dentro da Mostra é que, antes de cada filme, há uma pequena apresentação, em alguns casos, do próprio diretor ou de alguém ligado à produção do filme. Com isso, a aderência, o contato com a obra em questão acaba sendo mais fácil, porque acabamos ouvindo de pessoas de dentro da produção sobre o próprio filme. Foi assim com Diários de Perlov, em que a esposa do diretor falecido ano passado, Nora Perlov nos deu depoimento emocionante sobre a obra, e que, infelizmente só tive a chance de ver os dois primeiros episódios; e também com Proibido Proibir, em que Jorge Durán contou como foi a experiência de filmar os jovens brasileiros. Foi um dia marcado pela correria entre uma sala e outra, nos horários sempre colados e que exigiam que eu subisse ladeiras acima e abaixo a fim de chegar a tempo às sessões. Ainda assim, foi um dia gratificante por me colocar em contato com filmes tão diferentes, mas que vistos de uma só vez acabam por criar um vínculo interessante.
Diários de Perlov 1 e 2
Foi com esse filme que comecei o primeiro dia da Mostra, vendo as duas primeiras partes de um diário filmado, composto por seis episódios de uma hora cada, realizados pelo cineasta David Perlov, que morreu ano passado. Perlov, professor de cinema de uma universidade de Tel-Aviv, estava desapontado com os rumos que o cinema da década de 70 estava tomando, se tornando muito mais produto de publicidade e de ideologias baratas, do que uma expressão artística. Com isso, resolveu filmar o seu cotidiano e de sua família, bem como de tudo o que acontecia a sua volta. Nasceu assim Diários de Perlov,filme em que o cineasta registra, do período de 1970 até meados de 90, as banalidades do dia-a-dia, do cotidiano, do olhar a janela, do olhar as pessoas e seus rostos, do olhar a vida em sua plenitude.
Perlov consegue momentos de grande força, como quando filma as mulheres no muro das lamentações em alvoroço com o estouro da guerra do Yon-Kipur; quando filma Nora sua esposa em seus momentos de intimidade; quando visita um cemitério que se divide entre suicidas, velhos e vítimas de guerra; do seu reencontro com o passado na cidade de São Paulo (o diretor nasceu aqui) ou quando, no segundo ato, ele e sua câmara captam momento de grande força: sua filha voltando de viagem desiludida com o namorado. Diários de Perlov abriu de uma maneira quase surreal a minha chegada a esta Mostra que, em apenas um dia, se mostrou surpreendente, funcionando quase como um prólogo a esta maratona incessante de filmes que estou vivendo. Isso porque, antes de tudo, o filme é sobre a paixão de se filmar, de se documentar via imagens as coisas mais simples, e por isso mesmo, mais carregadas de mistério e fascinação.
Cotação:****
Mary
É difícil falar sobre esse novo filme de Abel Ferrara. Primeiro, porque é o mais complexo de seus trabalhos e por isso merece muitas revisões. Segundo, porque é um Ferrara que parece estar mais ligado ao cinema dito de arte do que ao de gênero que ele se consagrou fazendo, como o policial, a ficção científica e os filmes de ação.
Entretanto, é um Ferrara no pleno domínio da linguagem cinematográfica. Ele consegue criar cenas que simplesmente seriam impossíveis de se colocar no papel, numa consciência impressionante da misé en scene.
Muita gente andou criticando o filme por não ser tanto sobre Marie (Juliette Binoche), que após interpretar Maria Madalena em um filme sobre a vida de Cristo, resolve largar tudo pra se encontrar com a fé e com Deus, mudando-se para Jerusalém. Não é de graça que Ferrara abre seu filme com a cena em que Jesus ressuscita e pede a Maria que avise a seus discípulos, no filme dentro do filme que é "In My Blood", dirigido por Tony Childress (interpretado por Mathew Modine que hora parece um alter ego de Ferrara e outra uma caricatura de Mel Gibson). Mas o filme na verdade tem três protagonistas e é em torno deles que a trama irá girar. Portanto, além de ser um filme de Marie, é também um filme de Tony e do apresentador de TV Theodore (o sempre estupendo Forest Whitaker) e seus questionamentos sobre fé, raça, sexo e Deus. Na verdade, pra mim, Ferrara disse muito sobre o papel da mulher na sociedade (e isso pouca gente percebeu) e sobre essa busca incessante pela verdade sobre Cristo, quando nos esquecemos dos reais ensinamentos do "mestre" que é simplesmente amar o seu próximo. É claro que Ferrara não cai nas facilidades desses temas tão batidos e vai muito além, porque mesmo buscando a redenção e a fé, cada personagem ainda enfrenta momentos de grande violência, dúvida, sempre emoldurados pelas imagens impecáveis que se fundem umas às outras através de sua montagem maravilhosa.
Ferrara também nunca se esquece de falar de Nova York, o que me lembrou bastante em alguns momentos, de outro filme brilhante seu, X-Rmas (Gangues do Gueto). Mas e a trama? Theodor é um apresentador que está fazendo uma série de programas sobre Cristo. Quem foi ele? Quem foram seus verdadeiros discípulos? E quem e por quê mataram-no? São essas algumas das perguntas do apresentador que são respondidas por teólogos e estudiosos de verdade. Theodor é um homem como qualquer outro, trai a mulher, tem suas dúvidas, seus impasses. De outro lado está Tony, diretor megalomaníaco, que vem sofrendo críticas a seu filme por mostrar um Cristo bem diferente do que as escrituras diziam. E por último Marie, atriz famosa que larga tudo pra se entregar aos ensinamentos de Cristo. Ferrara entrelaça a vida desses três personagens os colocando frente a frente com suas dúvidas e fraquezas, e por isso, o filme é muito menos sobre Deus, Cristo e religião do que sobre seres humanos, que erram, se redimem e erram novamente. É um filme denso, forte, que acumula seu poder nas suas imagens impressionantes. A primeira obra-prima do festival.
Foi com esse filme que comecei o primeiro dia da Mostra, vendo as duas primeiras partes de um diário filmado, composto por seis episódios de uma hora cada, realizados pelo cineasta David Perlov, que morreu ano passado. Perlov, professor de cinema de uma universidade de Tel-Aviv, estava desapontado com os rumos que o cinema da década de 70 estava tomando, se tornando muito mais produto de publicidade e de ideologias baratas, do que uma expressão artística. Com isso, resolveu filmar o seu cotidiano e de sua família, bem como de tudo o que acontecia a sua volta. Nasceu assim Diários de Perlov,filme em que o cineasta registra, do período de 1970 até meados de 90, as banalidades do dia-a-dia, do cotidiano, do olhar a janela, do olhar as pessoas e seus rostos, do olhar a vida em sua plenitude.
Perlov consegue momentos de grande força, como quando filma as mulheres no muro das lamentações em alvoroço com o estouro da guerra do Yon-Kipur; quando filma Nora sua esposa em seus momentos de intimidade; quando visita um cemitério que se divide entre suicidas, velhos e vítimas de guerra; do seu reencontro com o passado na cidade de São Paulo (o diretor nasceu aqui) ou quando, no segundo ato, ele e sua câmara captam momento de grande força: sua filha voltando de viagem desiludida com o namorado. Diários de Perlov abriu de uma maneira quase surreal a minha chegada a esta Mostra que, em apenas um dia, se mostrou surpreendente, funcionando quase como um prólogo a esta maratona incessante de filmes que estou vivendo. Isso porque, antes de tudo, o filme é sobre a paixão de se filmar, de se documentar via imagens as coisas mais simples, e por isso mesmo, mais carregadas de mistério e fascinação.
Cotação:****
Mary
É difícil falar sobre esse novo filme de Abel Ferrara. Primeiro, porque é o mais complexo de seus trabalhos e por isso merece muitas revisões. Segundo, porque é um Ferrara que parece estar mais ligado ao cinema dito de arte do que ao de gênero que ele se consagrou fazendo, como o policial, a ficção científica e os filmes de ação.
Entretanto, é um Ferrara no pleno domínio da linguagem cinematográfica. Ele consegue criar cenas que simplesmente seriam impossíveis de se colocar no papel, numa consciência impressionante da misé en scene.
Muita gente andou criticando o filme por não ser tanto sobre Marie (Juliette Binoche), que após interpretar Maria Madalena em um filme sobre a vida de Cristo, resolve largar tudo pra se encontrar com a fé e com Deus, mudando-se para Jerusalém. Não é de graça que Ferrara abre seu filme com a cena em que Jesus ressuscita e pede a Maria que avise a seus discípulos, no filme dentro do filme que é "In My Blood", dirigido por Tony Childress (interpretado por Mathew Modine que hora parece um alter ego de Ferrara e outra uma caricatura de Mel Gibson). Mas o filme na verdade tem três protagonistas e é em torno deles que a trama irá girar. Portanto, além de ser um filme de Marie, é também um filme de Tony e do apresentador de TV Theodore (o sempre estupendo Forest Whitaker) e seus questionamentos sobre fé, raça, sexo e Deus. Na verdade, pra mim, Ferrara disse muito sobre o papel da mulher na sociedade (e isso pouca gente percebeu) e sobre essa busca incessante pela verdade sobre Cristo, quando nos esquecemos dos reais ensinamentos do "mestre" que é simplesmente amar o seu próximo. É claro que Ferrara não cai nas facilidades desses temas tão batidos e vai muito além, porque mesmo buscando a redenção e a fé, cada personagem ainda enfrenta momentos de grande violência, dúvida, sempre emoldurados pelas imagens impecáveis que se fundem umas às outras através de sua montagem maravilhosa.
Ferrara também nunca se esquece de falar de Nova York, o que me lembrou bastante em alguns momentos, de outro filme brilhante seu, X-Rmas (Gangues do Gueto). Mas e a trama? Theodor é um apresentador que está fazendo uma série de programas sobre Cristo. Quem foi ele? Quem foram seus verdadeiros discípulos? E quem e por quê mataram-no? São essas algumas das perguntas do apresentador que são respondidas por teólogos e estudiosos de verdade. Theodor é um homem como qualquer outro, trai a mulher, tem suas dúvidas, seus impasses. De outro lado está Tony, diretor megalomaníaco, que vem sofrendo críticas a seu filme por mostrar um Cristo bem diferente do que as escrituras diziam. E por último Marie, atriz famosa que larga tudo pra se entregar aos ensinamentos de Cristo. Ferrara entrelaça a vida desses três personagens os colocando frente a frente com suas dúvidas e fraquezas, e por isso, o filme é muito menos sobre Deus, Cristo e religião do que sobre seres humanos, que erram, se redimem e erram novamente. É um filme denso, forte, que acumula seu poder nas suas imagens impressionantes. A primeira obra-prima do festival.
Cotação:*****
Proibido Proibir
O cinema nacional andava carente de filmes que falassem diretamente com o universo dos jovens, sem aquele olhar deturpado global de Malhação. Jorge Durán então, reúne sua turma de alunos e ex-alunos de cursos de cinema ministrados por ele, pra falar sobre uma fase decisiva na vida dos jovens: a universidade. Não é sem razão, que ele centra seu filme em 3 personagens, Paulo (Caio Blat inspirado), amigo de León (Alexandre Rodrigues), que namora com Letícia (a sempre graciosa Maria Flôr). Paulo faz medicina, o que dá ao filme um tom mais humano, mais carnal. León faz jornalismo, é negro (e o melhor da sala) e me parece ser o personagem mais frágil e unidimensional da trama, pois será ele quem vai lidar com o elemento "denúncia" do filme. Letícia, por sua vez, é o olhar estético que Durán imprime em seu filme. Ela faz arquitetura, e será pelos olhos dela que veremos os personagens se relacionarem com o espaço a sua volta. Ela é, sem dúvida, o link estético que Durán precisava pra fazer um filme que lidasse com a imagem de uma maneira menos óbvia, investigando os espaços, a arquitetura decadente do Rio e conseqüentemente, seus personagens e suas ações. É um filme que carrega alguns problemas consigo, em parte pelo elenco secundário e também pelo terço final, que desvia o filme de sua seara humana pra fazer uma denúncia que já estava sendo feita ao longo de todo o filme, com mais sutileza. Nada porém que soe gratuito. Proibido Proibir é um filme acima da média por lidar de maneira mais próxima com o jovem, sem ser burlesco, caricato.
Cotação:***
O Violino
Filme mexicano, com forte tom político. Segue a vida de três gerações de uma família de camponeses (avô, pai e filho), músicos, num momento complicado da história recente do México em que o exército, à procura de guerrilheiros rebeldes, expulsa camponeses de seus vilarejos e os assassina, à procura de informação sobre a guerrilha. É dessa forma que Genaro, que ganha a vida tocando violão em bares junto com seu pai Plutarco - que mesmo com uma só mão, toca seu violino enquanto Lúcio seu neto, recebe o dinheiro das pessoas que estão em volta - tem sua mulher e filha capturadas pelo exército e levadas para casas de prostituição na cidade. A princípio, o filme parece carregar alto tom maniqueísta, distinguindo de maneira fácil e óbvia, os bons dos maus. É essa, por exemplo, a diese de uma das cenas mais bonitas do filme, quando Plutarco, sem saber o que responder ao neto sobre sua mãe, conta uma estória sobre os homens bons e os homens gananciosos, quando Deus mandou que os homens de bem lutassem contra os invejosos e maus, a fim de recobrar a paz na terra. A câmera, que a princípio está fixa em avô e neto, se afasta e num movimento lento, enquanto a estória é contada pelo velho, vai passando pela fogueira e subindo em um tronco de árvore até se fixar na lua.
Filmado em um preto-e-branco granulado, mas que às vezes parece colorir todas aquelas paisagens, o filme ganha força na figura serena do velho Plutarco, homem sábio, artista, de rosto marcado e de olhares profundos. Interpretado belíssimamente por Don Angel Tavira, prêmio de melhor ator em Cannes na mostra Un Certain Regard. É um filme irregular na sua composição, mas que carrega sua força nos personagens que parecem vindos do neo-realismo italiano. E se antes, o diretor Francisco Vargas parecia tratar tudo de maneira maniqueísta, ele se redime quando Plutarco, a fim de buscar sua nora e neta, conhece o comandante do exército e passa a ensiná-lo a tocar violino. O comandante que, a princípio, era um tirano, parece amolecer diante daquele homem tão sábio e cheio de vida que é Plutarco, e se mostra humano ao menos em uma cena do filme. O Violino fecha, assim, esse promissor primeiro dia da Mostra de maneira doce e dura ao mesmo tempo, numa obra que, se está longe de ser uma obra completa, é ainda assim um filme e tanto.
Cotação: ***
Rafael C. Parrode
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