''Socorro, não estou sentindo
Nada
Nem medo, nem calor, nem fogo,
Nao vai dar mais pra chorar
Nem pra rir.''
(Arnaldo Antunes)
Antes, seu pranto rolava solto. Ela sentia o peito expandir-se até quando ouvia o hino. A abertura dos jogos olímpicos a emocionava. Sua emoção estava sempre à flor da pele, seu riso e seu pranto eram plenos, quase viscerais.
Houve um tempo, distante dali, em que precisava colocar algum filme triste no aparelho para conseguir chorar. Havia dias que chegava a casa sabendo que precisava aliviar a dor, escolhia uma película, daquelas mais tristes, preparava um lanchinho frugal, derramava-se sobre as almofadas e entregava-se ao drama alheio. Choraaaaaava...chorava tanto, chegava a soluçar. Sentia aquela dor, como se fôra sua, e era...
Houve um tempo em que ela já não se emocionava mais. Ela até percebia - por meio da razão - a injustiça dos fatos e o clamor que causavam. Não se identificava, não via razão para a histeria. Nem a fome na África, nem o assassinato brutal da mãe de um amigo conseguiam fazê-la despir-se daquele olhar distante, quase frio. Olhava, via, virava-se e partia. As mortes, a fome e a dor alheias não a incomodavam, eram apenas colecionadas junto às reminescências, bem no fundo de si mesma.
Houve um momento em que quis saber porque os outros sentiam e ela não. Por que ela sentia nada?
Consultou muitos sábios, cientistas e magos. Foi até a montanha mais alta, foi às profundezas do oceano, nada encontrou que pudésse fazê-la entender. Deparou-se com uma bruxa boa, que a ensinou 'exercícios do sentir'. Praticava todos os dias, incansável, perseverante. Estava determinada a sentir algo. Pouco a pouco suas glândulas lacrimais, que já estavam sem funcionamento há anos, voltaram a funcionar. Primeiro timidamente, doía muito a garganta. Depois, com muito treino, foram ficando cada vez mais eficientes.
Houve um tempo, logo depois dos exercícios, que sentia tanta dor que chegava a urrar enquanto vertia lágrimas em abundância. A dor tomava conta de todo o seu ser e ela pranteava tal qual um animal ferido. Foi assim por trinta dias e trinta noites, até que seu coração se aquietou. Ouvia ao longe uma cantiga de ninar, sussurada com palavras ininteligíveis. Ouvia o barulho quieto do vento, que suavemente tocava-lhe as faces. Sentia um cansaço quase prazeiroso. Finalmente sentira o silêncio de si mesma.
Quis sentir mais, quis sentir algo além da dor. Entregou-se ao prazer e à paixão. Ela podia sentir paixão, ela podia sentir dor. Ela brincou na montanha-russa da paixão-dor-paixão. Ela riu e chorou, muitas e muitas vezes. Seus olhos brilhavam por satisfação ou pelas lágrimas derramadas, mas eles brilhavam. Ela estava viva. E o cansaço chegou, e o pranto venceu o riso, e a dor sobrepujou o prazer. Estava, de repente, imóvel no centro da sala, no centro do mundo. Sentia aquele cansaço conhecido, sentira novamente o silêncio. Ele era doce e estanque.
...E esse silêncio passou a acompanhá-la. Estava a seu lado, mantendo-a no mundo, a despeito da dor. Ele a acompanhava na solitude ou em meio à multidão. Em discursos, entrevistas e animadas conversas em rodas sociais - lá estava ele. Ela ria e lá estava o seu silêncio. Por vezes, rolavam uma ou duas lágrimas silenciosas, quietas em sua face lívida.
Maria Cláudia Cabral
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